sexta-feira, 3 de junho de 2011

A batalha dos métodos - Marlene Carvalho

 
Numa rua de subúrbio, uma menina, sentada à porta de casa, olhava umlivro ilustrado. Perto dali havia uma escola normal e passavam muitas jovensque se preparavam para ser professoras.
Uma delas parou ao ver a criança com o livro nas mãos e disse:
- Que gracinha!
- Me conta a história?
- Não, primeiro você tem que aprender a ler. Quer que eu te ensine? Olhando o título, a jovem apontou:
- A, o, e, u, i, o. Não, assim, não. Melhor assim: a, e, i, o, u.
A criança olhou desconsolada e pediu novamente para ouvir a história. A futura professora não desistiu.
- Veja, é fácil: a com i faz ai! Como você fala quando sente uma dor. E e com u faz eu! E apontava para o próprio peito, dizendo: eu, ai! eu, ai!
Um pouco assustada, a criança desviou o olhar e abriu o livro. A normalista aborreceu-se e foi para a aula de Métodos e técnicas de alfabetização contar para a professora que tinha encontrado uma pobre criança que era um caso típico de falta de prontidão para a leitura.
Logo depois passou outra jovem e perguntou:
- O que é que você está lendo?
- Não sei ler. Me conta a história?
- Vou ensinar você a ler. Como é seu nome?
- Betinha.
- Não, isso e o seu apelido. Como é o seu nome?
A menina pensou um pouco e olhou desolada para o livro:
- Me conta a história.
- Só se você me disser seu nome.
- Elisabete Maria de Oliveira.
- Ah, bom. Então vamos ver.
Puxando um caderninho da bolsa, a moça escreveu Elisabete e deu à criança.
- Aqui está o seu nome: ELISABETE. Vamos ler apontando com o dedinho.
Apontando as nove letras, a menina leu: E-li-sa-be-te- Ma-ri-a- de-O-li-vei-ra.
A jovem ficou embatucada e anotou a resposta para ir perguntar como in­terpretá-la à professora de psicogênese da língua escrita.
- Tchau, querida! Outro dia eu te ensino, o.k.?
Não demorou muito, passou outra jovem simpática e a criança lhe pediu:
- Me conta a história!
- Que gracinha! Eu conto se você me responder umas perguntas.A criança olhou ressabiada.                                                                                       
- Você já sabe as letras do alfabeto?
- Não.
- Você conhece as famílias silábicas?
- Quê?
- Deixa pra lá. Me diga uma palavra que começa com pa. Por exemplo, pato, papai, palácio.
- Rei, princesa.
- Quê?
- Palácio, rei, princesa.
A futura professora suspirou. Saiu dali muito triste, achando que a meni­na era muito bonitinha, mas não tinha discriminação auditiva.
Daí a meia hora, passou um professor de gramática, cansado e meio cal­vo, andando devagar. A menina resolveu tentar a sorte.
- Me conta a história!
- Não é assim. Fale de novo: conta-me a história.
- Hum?
- Conta-me a história, eu disse.
- Mas eu não sei ler.
- Não, não é você que deve contá-la. Aliás, minha pobre criança, você não sabe nem falar.
A menina fechou o livro com força e fez uma careta de nojo para o gra­mático. Ele respondeu:
- Atrevida! Analfabeta! Iletrada! Anômala! Anojosa! Anacoluto! e retirou-se, muito satisfeito de possuir um vasto vocabulário para qualificar a pirralha.
Passou um tempinho, veio pela calçada uma professora de sociolingüística, com seu gravador a tiracolo, e a menina resolveu tentar a sorte:
- Tia, me conta a história!
- Fala de novo, meu bem, disse a professora, e ligou o gravador. Estava fazendo uma pesquisa sobre dialetos das classes populares do subúrbio do Rio, de modo que não podia perder a chance de gravar a fala da criança.
- Que que é isso?
- Um gravador. Vou gravar o que você falar. Vamos conversar. Quantos anos você tem?
- Me conta a história.
- Depois eu conto. Converse um pouquinho comigo.
- Quero a história.
- Você me conta uma história. Eu gravo, depois passo tudo para o papel, pego a sua história e aí...
Mas a professora não pode concluir: a menina já estava longe, pulando num pé só, fora do alcance da pesquisadora. Na esquina, encontrou o vende­dor de cocadas que fazia ponto perto da escola normal. Pouco movimento, tarde parada. O vendedor olhou pra menina com o livro e perguntou:
- Já leu esse livro?
- Não, lê pra mim? disse a menina, sem muita esperança de ser atendida.
- Hum, deixa eu ver.
O rapaz abriu o livro. Foi lendo devagar, como possível, pois tinha apren­dido a ler mal e mal, há muito tempo atrás.
- Era uma vez uma menina chamada Chapeuzinho Vermelho. Um dia, a mãe dela cha-cha-mou-a e disse...
A menina deu um suspiro de prazer e sentou no muro da escola para ouvir a história. Lá dentro, alguém dava uma aula sobre métodos de alfabetização.

Bibliografia
CARVALHO, Marlene. Alfabetizar e Letrar: um diálogo entre a teoria e a prática. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005. p.129-131.

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