domingo, 21 de agosto de 2011

BORTONI-RICARDO, Stella Maris; FERNANDES DE SOUSA, Maria Alice. Andaimes e pistas de contextualização: um estudo do processo interacional em uma sala de alfabetização . Disponível em: . Acesso em: 05/07/06.


ANDAIMES E PISTAS DE CONTEXTUALIZAÇÃO


Resumo: Andaime é um termo metafórico que se refere à assistência visível ou audível que um membro mais experiente de uma cultura presta a um aprendiz, em qualquer ambiente social, ainda que o termo seja mais empregado no âmbito do discurso de sala de aula. Dois conceitos básicos subjacentes à noção de andaime são a zona de desenvolvimento proximal (zdp) de Lev Vygotsky, retomado por Jerome Bruner, e as pistas de contextualização, como propostas por John Gumperz, principal teórico da Sociolingüística Interacional. As ações de andaimes processam-se por meio de múltiplos traços lingüísticos e cinésicos. Andaimes em sala de aula assumem a forma de prefácios a perguntas, complementação do turno, canais de retorno, expansões, reformulações etc, que dão aos alunos oportunidade para reconceptualizações. A assistência por meio de andaimes em sala de aula pode vir do professor ou de pares. Neste texto, empregando alguns recursos da metodologia microetnográfica, segmentamos episódios de andaime na interação entre uma Professora de alfabetização e seus alunos de primeira série em uma escola pública Distrito Federal.

Palavras-chave: andaimes,  interação professor-alunos, zona de desenvolvimento proximal, pista de contextualização,  reconceptualização.

1. O conceito de andaime ou andaimagem (tradução de scaffolding do inglês) está baseado na tradição de estudos do discurso de sala de aula[1] e, da forma como é discutido neste capítulo, vai-se haurir em duas perspectivas acadêmicas, desenvolvidas respectivamente no âmbito da Psicologia e da Sociolingüística, a saber, a teoria sociocultural de língua e aprendizagem avançada pelo psicólogo russo Lev S. Vygotsky e a abordagem sociolingüística à interação humana, conhecida como Sociolingüística Interacional, cujas raízes se fundam nos trabalhos de John Gumperz (2003) e associados (cf. RIBEIRO E GARCEZ (orgs.), 2002). As referidas  perspectivas compartilham pelo menos dois pressupostos: 1 - a linguagem, e conseqüentemente a interação entre pessoas, são consideradas fundamentais no processo de aprendizagem e 2 – as ações humanas, incluindo-se aí a linguagem, constituem esforços construídos de forma cooperativa e conjunta pelos interagentes. 
Andaimes são um conceito metafórico que se refere a um auxílio visível ou audível que um membro mais experiente de uma cultura pode dar a um aprendiz. O trabalho de andaimagem é mais freqüentemente analisado como uma estratégia instrucional no domínio da escola, mas, de fato, pode ocorrer em qualquer ambiente social onde tenham lugar processos de sociabilização.
O termo foi introduzido pelo psicólogo norte-americano Jerome Bruner (1983), cujo principal interesse são as formas institucionais pelas quais a cultura é transmitida. Subjacente ao seu trabalho, releva-se a noção de zona de desenvolvimento proximal (zdp) avançada por Vygotsky (1987). Segundo esse autor, a zdp é o espaço entre o que o aprendiz pode realizar sem qualquer assistência e o que consegue mediante assistência de um par mais experiente. Há que se considerar ainda na teoria sócio-histórica legada por Vygotsky a ênfase nas relações interpessoais: a aquisição do conhecimento, como um atributo intrapessoal, processa-se por meio da ação  entre pessoas.
Outro conceito seminal na racionalidade subjacente à andaimagem é o de pistas de contextualização proveniente da Sociolingüística gumperziana. 
Para John Gumperz (2003), pistas de contextualização são quaisquer sinais verbais ou não-verbais que, processados juntamente com elementos simbólicos gramaticais ou lexicais, servem para construir a base contextual para a interpretação localizada, afetando assim a forma como as mensagens são compreendidas.
Esther Figueroa (1994, p.113), ao analisar a obra de Gumperz, apresenta uma interessante definição para pistas de contextualização: qualquer traço da forma lingüística que contribui para sinalizar aos participantes de uma interação que a comunicação está transcorrendo sem transtornos, facilitando-lhes a codificação e a interpretação de   finiçFigueroa (1994, um atributosua intencionalidade.
As pistas de contextualização transmitem-se por traços prosódicos (altura, tom, intensidade e ritmo); cinésicos (decoração facial, direção do olhar, sorrisos, franzir de cenho); e proxêmicos, todos eles recursos paralingüísticos que, juntamente com o componente segmental dos enunciados lingüísticos, são a principal matéria-prima de que se constituem os andaimes. Sendo assim a micro-análise das pistas de contextualização permite-nos uma descrição pormenorizada do trabalho de andaimagem. Note-se que as estratégias de andaimes são culturalmente específicas e podem variar muito em função de redes sociais, grupos étnicos ou culturais e comunidades nacionais.
Na tradição do discurso de sala de aula, os andaimes são associados com as iniciações de um ato de fala pelo professor e com suas avaliações das respostas dos alunos. Estamos considerando aqui o modelo tripartite: IRA – iniciação – resposta – avaliação, tradicionalmente usado na análise do discurso de sala de aula, proposto por Sinclair e Coulthard (1975), que se compõe de um turno de iniciação pelo professor – geralmente uma pergunta ou uma problematização, seguido sucessivamente da resposta dos alunos e da avaliação, correção ou expansão pelo professor. Observe-se também que os andaimes podem ser construídos na interação professor/alunos ou alunos/alunos. Uma característica básica do processo de andaimes é o estabelecimento de uma atmosfera positiva entre professor e alunos, por  meio de ações simples, como a de se ouvirem e se ratificarem mutuamente, como  aprendemos na Pedagogia de Paulo Freire. (cf. BORTONI-RICARDO, 2005).
Um trabalho de andaimagem pode tomar a forma de um prefácio a uma pergunta, de sobreposição da fala do professor à do aluno, auxiliando-o na elaboração de seu enunciado, de sinais de retorno (backchanneling), de comentários, reformulações, reelaboração e paráfrase e, principalmente, de expansão do turno de fala do aluno. Todas essas estratégias dão ao aluno a oportunidade de “reconceptualizar” o seu pensamento original, seja na dimensão cognitiva seja na dimensão de sua competência comunicativa. 
Cazden (1988) associa a reconceptualização ao turno de fala do professor reservado à avaliação, mas alerta para o fato de que esse turno não deve ser apenas um veredicto sobre a correção ou a incorreção da contribuição do aluno. Antes, é uma oportunidade de induzir os alunos a novas formas de pensar, de analisar, de categorizar e de falar. Segundo a autora há uma diferença crucial entre ajudar um aluno a dar uma resposta e ajudá-lo a atingir uma compreensão conceitual que lhe permitirá produzir respostas corretas e pertinentes em situações semelhantes no futuro.  

 2. No que se segue discutimos alguns exemplos de andaimagem recolhidos em uma turma de alfabetização durante a metade de um turno de aula, observado por ambas as autoras deste capítulo[2].
1  – A Professora escreve um provérbio no quadro: “O tempo é o melhor remédio”. Passa depois a discutir com a turma o significado do provérbio[3]. 
P – Falando para todos os alunos. Se um menino está triste porque está apaixonado e aí a mãe... (ela se aproxima de um aluno põe a mão em sua cabeça e começa a imitar uma mãe, consolando um filho que está triste).
A Professora reconceptualiza a idéia, movendo-se do plano abstrato do adágio para um plano concreto, ao contextualizar uma situação à qual se aplica o adágio: “O tempo é o melhor remédio”.  Como estratégias representa a mãe no gesto de afagar a cabeça de um aluno e na fala em que imita uma mãe dirigindo-se ao filho. Deixa que os próprios alunos construam a inferência: “A mãe está dizendo ao filho que não fique triste porque com o tempo ele vai-se esquecer de sua paixão”.  Transferir-se do plano abstrato do adágio para uma situação que provavelmente é familiar aos alunos, senão tanto pela experiência pessoal, mas pela experiência vicária, que já têm, por assistirem a novelas e filmes ou ouvirem narrativas, é uma estratégia clara de andaimagem, construída verbal e cinesicamente, quando  representa o comportamento da mãe.  
2 – A Professora convida os alunos para se sentarem no tapete sem sapatos; nomeia alguns alunos. P - Lucas e Gabriel... Alguém comenta que tem cheiro de chulé no ambiente. A Professora ouve o comentário e ratifica o aluno que o produziu, aduzindo um comentário pertinente: P – Vamos resolver esse problema do chulé.
Como bem mostra Paulo Freire (1997), a Professora ficar atenta ao que os alunos falam, indicando que os está escutando, é fundamental na interação de sala de aula.  O comentário da Professora é uma estratégia de andaime, ratificadora do aluno como falante primário, mesmo quando esse faz um comentário que poderia ser considerado impertinente naquela situação.
Depois de comentar com naturalidade a questão do chulé, a Professora continua a administrar a situação para que todos se acomodem.
3. P - Tem o Juliano, o Juliano chegou não tem nem um mês (acenando para um aluno) Gabriel, vem aqui me ajudar, vem. Bruno segura isso aqui pra  tia.
Com a estratégia de nomear dois alunos, dando-lhes instruções, ela os envolve na atividade.
4. Depois  retorna ao quadro para comentar os provérbios. P - Vamos relembrar, eu falei: Toucinho de porco não é tomada...Vou contar uma história para vocês tem gente que já conhece.
A palavra “relembrar” é uma pista de contextualização que a Professora usa para indicar aos alunos que vão retomar a atividade inicial da aula. Isso era importante como preâmbulo para a história, cujo título faz referência a um adágio popular: “Maria vai com as outras”. A transição entre os comentários de provérbios e expressões populares para a história configura estratégia de andaimagem. Observe-se que, na condução dessa atividade de transição, a Professora usa linguagem bem coloquial:  “tem gente ...”. Está de fato operando uma convergência de sua fala para o repertório usual das crianças e transmitindo uma pista de contextualização. Trata-se de recurso de andaimagem muito freqüente durante a sua aula.
5. Na seqüência, pega um livro e mostra: P - Sabe quem escreveu essa história?
A’s – Vinícius de Moraes... Monteiro de Moraes... Toquinho...
Os alunos tentam vários nomes que conhecem de escritores e compositores, trocam os nomes (Monteiro Lobato fica Monteiro de Moraes). A Professora os estimula, construindo um andaime com  meneios de cabeça que,  na nossa cultura, são um sinal de retorno indicativo de aprovação. Aceita todas as sugestões dadas pelos alunos, depois fornece a resposta.
6.P – Já veio história dela aqui, é  Sílvia Ortoff. Dá a informação e imediatamente continua o controle da atenção e participação de todos. Gabriel, Lucas, eu pedi para largar os ursinhos para a gente poder prestar atenção. Ela começa a narrativa, pega uma ovelha de pelúcia, mostra a ovelha. P -  essa é uma história de uma... (mostra a ovelha).
Ao permitir que os alunos complementem seu enunciado, a Professora está construindo um andaime, valendo-se de dois recursos: Usa entoação ascendente, inconclusa, e mostra-lhes uma ovelha de brinquedo.
A – Um leão.
A’s – Uma ovelha.
7. P – Ô Gabriel, tudo de leão, o Gabriel adora.
Diante da sugestão equivocada do aluno, a Professora não o critica abertamente. Usa, como andaime, um ato de fala indireto iniciado pelo marcador conversacional “Ô”, que é uma pista de contextualização e serve para marcar o aluno como ouvinte primário. Em seguida, faz uma observação positiva sobre o interesse do aluno pelos leões. Esta é uma forma de prestigiá-lo e cooptá-lo para atividade em curso. Cria assim as condições para que ele processe uma reconceptualização e  chegue à resposta correta.
8. P – Agora eu quero um pra ler o título da história, (estica o braço que está segurando o livro para enfatizar o convite).
 A’s – Eu, eu.
P – Mostra o livro e lê. P - Maria vai com as outras – Sílvia Ortoff – editora Ática. Mostra a referência à editora na capa do livro e diz aos alunos: P - que qué isso? Faz a pergunta e fornece imediatamente uma explicação sobre o que é uma editora. Propor a pergunta e imediatamente fornecer a resposta é uma pista de contextualização pela qual mostra aos alunos que eles estão construindo conjuntamente aquele discurso.
9.P – É uma das minhas preferidas... Melhoramentos e Editora Ática. É aonde a Sílvia Ortoff entregou o livro dela pra eles fazerem os desenhos, as letras.
Para explicar o que é uma editora, a Professora usa dois recursos de andaimagem: cita o nome de duas editoras e depois explica com palavras bem acessíveis o que é uma editora, retomando uma informação que ela já vinha passando aos alunos em aulas anteriores. Aqui, novamente, a convergência para a fala infantil configura uma pista de contextualização que implementa um andaime de incentivo para que os alunos são hesitem em contribuir com seus comentários.
10.P – Onde as outras ovelhas iam... Maria ia também...
Nesta seqüência, a Professora encerra cada fragmento da história com uma entoação ascendente, inconclusa, que é uma estratégia de andaimagem para pedir aos interlocutores que completem o enunciado:
11.P – As ovelhas iam pra cima...
A’s – Maria ia pra cima...
12. P – Maria ia sempre com as ...
A’s – outras.
13. P – Um dia as ovelhas foram para o Pólo Sul. O Pólo Sul é onde? Em cima ou embaixo? (faz gestos indicando para cima e para baixo).Na definição de “Pólo Sul”, a Professora usa uma  estratégia de simplificação, que é um andaime. Associa Pólo Sul ao conceito de “embaixo”. Mais tarde, as crianças certamente vão aprender que o Pólo Sul fica na parte inferior do globo terrestre. 
14.  P - Maria pegou gripe. Como é que elas faziam?
A’s – Atchim!
Motivar a participação das crianças é também um recurso de andaimagem, que lhes permite associar a doença “gripe” a um sintoma que lhes é familiar. Ajuda-os a manter seu status de co-narradores.
15. P – Todas as ovelhas iam para o deserto. (Procura no avental, que é um painel de várias cores e que funciona como um recurso para contar histórias, uma cor que possa representar um deserto.)
P -  Ai, que lugar quente! (abana-se).
A Professora não define deserto, limita-se a mostrar um ponto amarelado em seu avental-painel e faz o comentário: “Ai, que lugar quente”, abanando-se.
Com essa estratégia de andaime, reacende o envolvimento dos alunos e ativa seus conhecimentos prévios de esquemas cognitivos sobre o mundo, dando-lhes a oportunidade de inferir: Deserto é um lugar muito quente.  
16.P – Quando todas as ovelhas comiam jiló...
A’s – Maria comia também.
P – Todo mundo come, eu também como.
Aqui a Professora alterna a narrativa com comentários avaliativos relacionados à vida rotineira dos alunos. É, novamente, uma estratégia de andaime, que promove a condição dos alunos como co-narradores, garantindo a sua  atenção e envolvimento.
17. P – Retomando a leitura : “Maria suspirou”. Como é que é suspirar? (Os alunos suspiram).
Diante de item lexical que poderia ser desconhecido, a Professora usa como estratégia de andaime uma pergunta direta, que não precisa ser respondida verbalmente. Assim verifica se houve o entendimento dos alunos.
18. Uma criança toma o piso:
A – Eu já sei a história toda.
Observe-se que essa criança é proveniente de uma família mais letrada e geralmente tem mais informações que os demais alunos. A Professora a escuta, usando uma andaimagem de ratificação.  Não lhe rejeita a contribuição, todavia, como andaime, faz um comentário, um ato de fala que é de fato uma ponderação,  que julga necessária para mostrar à aluna que é comum  ouvirmos uma história ou  assistirmos a um filme mais de uma vez.
19.P – Já! Mas é bom ouvir uma história toda. Sabe quantas vezes eu já vi o mesmo filme? (Retoma a leitura). Até que as ovelhas resolveram pular do Corcovado. (Mostra a gravura). Quem sabe o que o é Corcovado? (Sem aguardar a resposta) explica: É um morro, lá tem um Cristo assim, (faz gestos com os braços abertos em cruz). Eu fui lá, tem um trenzinho e depois  um  monte de escadaria.
Nesta altura, como andaime, a Professora fornece uma explicação sucinta, mas o recurso aos gestos representando o Cristo Redentor parece ter  evocado nas crianças a imagem do Corcovado, que possivelmente já viram  na televisão ou em revistas. As crianças demonstraram, de fato,  ter compreendido bem o que é o Corcovado, pois, quando fizeram desenhos ilustrativos da parte da história de que mais gostaram, muitos desenharam o Corcovado próximo a uma lagoa. A seguir, a Professora faz mais comentários sobre o Corcovado e a Lagoa Rodrigues de Freitas e mostra-lhes a ilustração do livro.
20. P – Retomando a leitura. As ovelhas resolveram pular. Será que foram todas? Como é que a ovelha fala?
Como andaimes, a Professora encadeia duas perguntas. Na primeira, permitiu que as crianças refletissem sobre a resposta. Na segunda, usa o verbo “falar”, em vez de “balir”, possivelmente desconhecido das crianças.  Todas as crianças em uníssono imitam o balido das ovelhas, o que mostra que os recursos de andaimagem empregados pela Professora foram bem sucedidos.
A’s – Méééé...
21. P – Lendo. Pulava na pedra, não caía na lagoa, caía na pedra e chorava, quebrava o pé.
A – Xô vê, tia!
22.P – E assim Lucas, QUARENTA E DUAS ovelhas pularam.
A ênfase de Professora nos números e a nomeação de um aluno são recursos de andaimagem para manter ativada a atenção das crianças.
23.P – Retoma a leitura. Chegou a vez de Maria pular. Ela deu uma requebrada... Agora a requebrada é com você Gabriel. A Professora apóia as mãos nos joelhos e dá uma requebrada, que é imitada pelo aluno.
A pausa e os gestos ajudam a aumentar o suspense para o final da história. É um andaime para garantir que os alunos se sintam co-narradores e se mantenham atentos e interessados.
24. P – Lendo o desfecho da história. Ela entrou num restaurante e comeu uma feijoada. Agora vou deixar o avental pendurado todo mundo vai sentar. (As crianças retornam às carteiras).
25. P - Será que eu leio histórias aqui só para me divertir? Para que será que eu escolhi “Maria vai com as outras?”
Como estratégia de andaime, a Professora faz a pergunta que enseja a reflexão das crianças sobre o tema da história.
A – A senhora leu essa história para a gente aprender que se as pessoas tiverem fazendo coisa errada é pra gente não imitar.
26.P - O Gabriel Carvalho falou que eu trouxe a história aqui para mostrar, para ilustrar que a gente não deve imitar as coisas erradas.
A andaimagem aqui consiste em acatar a contribuição do aluno, que é bastante apropriada, reformulando-a ligeiramente, a fim de torná-la mais ajustada às normas gramaticais. Aproveita também para fornecer um sinônimo de “mostrar”.
27. Em seguida a Professora forma duplas de alunos para trabalharem juntos, de maneira a construírem andaimes uns para os outros.
28.P – Deixa eu olhar as duplas aqui no caderno. Vocês lembram como é que eu formei as duplas? Larissa com Bianca, Tauane com Tália, Lorena vem sentar com Lucas, agora aqui, ó, Edson com Bianca (trocou Bianca de lugar, passando a compor dupla com Edson e não mais com Larissa). (Volta-se para as pesquisadoras e justifica): já analisei bem essa dupla e essa dupla não andou dando certo. Jéssica você só vai ficar nessa dupla se você não  fizer as coisas para ele... (aproxima-se de um aluno e fala só com ele).
29.P – Bruno qual foi o acordo que nós fizemos? Parquinho só na sexta-feira. Aproxima-se do quadro de giz.
30.P – Posso escrever as instruções no quadro, Gabriel? Escreve no quadro: “Instrução número 1: Escrever o nome na folha”. As crianças querem saber se é preciso copiar a instrução.
31. P – Aquilo ali é apenas instrução. Não coloquei linha porque algumas pessoas têm letra muito grande outras têm letra pequenininha.
Ao esclarecer o que era preciso copiar a P está fazendo uma distinção entre dois níveis do seu discurso escrito no quadro: O título e o texto propriamente dito. Usou aqui uma andaimagem construída com uma instrução direta.
32. Escreve no quadro “Instrução número 2 – Ilustre”.
33. P – O que é ilustrar? (responde) Desenhar. É para ilustrar. Desenhar neste retângulo a história que eu contei hoje pra vocês.
 Fornecer um sinônimo de “ilustrar” é também uma estratégia direta de andaime.
Uma  aluna se levanta e se aproxima da Professora.
A – Ô tia, a gente vai escrever a historinha aqui. É pra desenhar aqui, é?
P – É pra desenhar parte da história ou a história toda, como você quiser.
Os alunos se envolvem no desenho. A Professora aguarda que eles terminem.
34.P – Quem terminou de desenhar (bate duas palmas) pode sair para lanchar lá debaixo da árvore.

3.Comentários finais
Nosso objetivo com este texto foi demonstrar como os andaimes se efetivam por meio de recursos lingüísticos, segmentais, supra-segmentais e paralingüísticos, muitos dos quais  constituem pistas de contextualização no processo interacional. Procuramos mostrar como a prática da andaimagem favorece uma interação positiva e produtiva entre Professora e alunos, resultando em um elemento facilitador de sua mediação pedagógica.
Observe-se que toda a aula é uma seqüência de estratégias de andaimes, o que certamente contribui para a atmosfera positiva em sala de aula. Podemos mencionar, aqui, ao fecho de nossas considerações, algumas dessas ações positivas que são implementadas por meio dos andaimes. A primeira delas é, sem dúvida, a disposição para ouvir. Em qualquer interação humana, a disposição dos interagentes de se ouvirem mutuamente, alternando o piso de fala, é crucial no desenvolvimento de relações positivas. Há um alto grau de contingência nos diálogos na medida em que os participantes escutam um ao outro e  vão produzindo seus turnos de fala de maneira muito complementar. Quando isso não acontece, a interação torna-se regressiva, e pode até evoluir para o confronto.
            Em sala de aula, é comum que os professores se envolvam tanto com o conteúdo das disciplinas que chegam a negligenciar esse princípio fundamental de prestar atenção ao que os alunos dizem. (Ver DETTONI, 1995).  Ouvir o aluno é o componente inicial e básico de sua ratificação como falante legítimo. A ratificação se complementa pelo incentivo aos alunos que tomem o piso de fala e participem da co-construção do discurso, da disciplina e da aprendizagem.  Ao longo de toda a aula, vemos a Professora  animando os alunos a atuarem como co-narradores e co-responsáveis pelas atividades que estão sendo desenvolvidas. 
Ratificar significa também aceitar a contribuição do aluno, mesmo quando é necessário conduzi-lo a uma reformulação, ou chamar-lhe a atenção para que assuma um comportamento compatível com a dinâmica de sala de aula.
Outros processos relevantes que se implementam por meio dos andaimes são a ativação de esquemas cognitivos que os alunos já detêm, a oportunidade de que desenvolvam inferências ou processem reconceptualizações,  ou que trabalhem  normas de convivência, considerando que as normas de sociabilização dos alunos naquele domínio social são diferentes das que adotam no domínio social da família. De fato, nas séries iniciais, os alunos estão sendo introduzidos à cultura de letramento,  adquirindo novas habilidades e competências, ao mesmo tempo que se vão  ajustando a regras de sociabilização que são um pouco distintas das que  prevalecem  em seu círculo primário.  Ao discutir essas estratégias de andaimagem, tivemos o propósito de ilustrar processos e ações positivos na interação de sala de aula. Procuramos, ainda, com este texto, dar   testemunho da competência da Professora que foi nossa colaboradora no trabalho.

BIBLIOGRAFIA
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BRUNER, Jerome. Child’s talk: learning to use language. New York: W. W. Norton, 1983.
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DETTONI, Raquel. Interação em sala de aula: as crenças e as práticas do professor. Dissertação (Mestrado) Brasília: UnB, 1995
FIGUEROA, Esther. Sociolinguistics metatheory. New York, 1994.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1997.
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SINCLAIR J, M. e COULTHARD R. M. Towards an analysis of discourse. London: Oxford University Press, 1975.
VYGOTSKY, Lev. S.  A formação social da mente. SP: Martins Fontes, 1987.


[1] Os estudos do discurso de sala de aula desenvolveram-se principalmente no âmbito da Etnografia de sala de aula. Um marco desses estudos é o trabalho de Courtney Cazden, Classroom discourse, 1988. Para leituras em Português ou em Espanhol, remetemos para estes  textos: Pagliarini Cox,  Maria Inês e Assis-Peterson, Ana Antônia de  (orgs.), Cenas de sala de aula, 2001 e Coll, César e Derek, Edwards (orgs.), Ensino, aprendizagem e discurso em sala de aula, 1998. PONTECORVO, Clotilde y ORSOLINE Margherita, Analisando los discursos de las prácticas alfabetizadoras desde la perspectva de la teoría de la actividade. Infancia y aprendizaje,  vol.58,  p. 125-141, 1992.

[2] A observação  foi efetuada  no dia 10/09/2004 em uma escola da rede pública do Distrito Federal.
[3] As falas que estamos reproduzindo são glosas porque nos baseamos em anotações escritas e não em transcrições de gravações. P indica  fala da Professora; A e A’s indicam as falas de um aluno ou de vários alunos respectivamente.

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