segunda-feira, 22 de agosto de 2011

ROSAE - I Congresso Internacional de Linguística Histórica, em homenagem à Profª. Rosa Virgínia Mattos e Silva - Profª. Stella Maris Bortoni-Ricardo (UnB)

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A tradição do trabalho com a língua portuguesa no ensino básico no Brasil tem sido objeto de revisões, principalmente a partir da segunda metade do século passado e é fonte de muitas dúvidas para os professores engajados nessa atividade. As principais dúvidas que os professores costumam verbalizar parecem estar associadas a um aparente paradoxo. Como desenvolver na escola a análise linguística que os PCNs de 1998 recomendam e ao mesmo tempo evitar o trabalho com a nomenclatura gramatical, a chamada NGB, conforme recomendam os linguistas?
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No Brasil herdamos uma tendência a valorizar em demasia a gramática normativa, que tem sido objeto até de legislação federal, como a Lei nº 5765 de 18 de dezembro de 1971, que aprovou alterações na ortografia da língua; o Decreto nº 6583 de 29 de setembro de 2008, que promulgou o Acordo Ortográfico de 1990 e, especialmente, a Portaria nº 36 de 28 de janeiro de 1959, do MEC, que propôs a Nomenclatura Gramatical Brasileira (NGB), que está completando 50 anos.
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Essa NGB, desde então, ganhou status de conteúdo programático em todos os níveis de ensino. Ensinar português passou a ser sinônimo de ensinar gramática, em detrimento de um trabalho pedagógico que favoreça a competência comunicativa dos alunos, habilitando-os a desempenhar, com eficiência e segurança, qualquer tarefa comunicativa, na língua oral ou escrita, que se lhes apresente na sua vida social e profissional.
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 Quando os linguistas criticam a gramática normativa estão considerando dois fatos: o primeiro é a séria distorção na nossa cultura escolar, que confunde o ensino da língua com a memorização de terminologia gramatical. O segundo é a ignorância das normas prescritivas em relação ao processo de evolução natural da língua e aos estudos descritivos, que se baseiam em metodologias mais atualizadas.
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Partilhamos o entendimento já expresso por muitos colegas de que a sistematização de uma terminologia gramatical pode ser um instrumento útil no trabalho escolar de reflexão e análise da língua, sua estrutura e usos, na fala, na leitura e na escrita. É importante, todavia, que a terminologia gramatical não se torne um fim em si mesma e que seja de fato empregada como recurso na sistematização da análise linguística.
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Se a terminologia gramatical for vista, como deve ser, como um apoio para a aprendizagem dos modos de falar e modos de escrever que ainda não fazem parte do repertório do falante, a questão que se impõe é:  “Que conceitos sistematizados na NGB seriam de relevância na pedagogia da língua portuguesa no Brasil?”
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 Para responder a essa questão, partimos de quatro pressupostos:
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1.      O ensino e aprendizagem da língua portuguesa na escola tem de levar em conta que os educandos já são falantes competentes nos registros ou estilos informais da língua, diferentemente das nações multilíngues, onde as crianças chegam à escola falando línguas distintas da língua que é usada como código escrito, para a transmissão do acervo de conhecimentos letrados na educação escolar;
2.      Na análise linguística desenvolvida na escola têm de ser priorizados os fatos da língua que são distintos nas modalidades oral e escrita. Em outras palavras, o ponto de partida da pedagogia da língua portuguesa no Brasil devem ser as distinções entre os modos coloquiais de falar e os modos formais de escrever;
3.         Como a comunicação oral e escrita se processa por meio de textos completos e significativos, os fatos da língua que vão adquirir relevância para uma pedagogia são os relacionados à textualidade, mais propriamente os processos de coesão e coerência textuais;
4.      O trabalho com a análise linguística na escola deve pautar-se por uma abordagem que seja incidental, holística e indutiva:
4.1                  Ela é incidental porque no trabalho pedagógico toda a oportunidade de se apresentar um fato linguístico, introduzindo-o, comentando-o ou relacionando-o a conhecimentos anteriores, deve ser aproveitado;
4.2                  Ela é indutiva porque as sistematizações sobre a estrutura da língua e os seus usos são adquiridos pelo processo indutivo. O estudante vai familiarizando-se com os fatos linguísticos em enunciados que permeiam seus usos, seja na interação oral, seja nos processo de leitura e escrita. Alguns desses enunciados já fazem parte de seu repertório; outros são novos e serão objeto de seu processo de aquisição.
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Outros enunciados, ainda, e talvez esses devam merecer um foco especial, são aqueles enunciados que se apresentam na língua de mais de uma forma ou variante. Frequentemente essas variantes são associadas a valores sociossimbólicos distintos e o estudante terá de aprender a selecionar essas formas concorrentes dependendo de várias condições que presidem à enunciação, em especial as expectativas de seu interlocutor – ouvinte ou leitor;
4.3                  Finalmente, ela é holística, porque os fatos da língua não deveriam ser trabalhados pedagogicamente de forma isolada. Cada evento de fala que enseja uma atividade de análise linguística não deve ficar circunscrito a um único fenômeno.  Outras observações podem ser oportunas, sejam elas relacionadas à dimensão sintagmática do enunciado, sejam elas relacionadas à sua dimensão paradigmática.
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Observe- se ainda que muitos fenômenos morfossintáticos têm sua gênese em processos fonológicos, como veremos.
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Vamos refletir um pouco mais sobre o nosso segundo pressuposto, que é também o mais importante, qual seja: o objeto da Pedagogia da Língua Portuguesa no Ensino Básico tem de ser construído levando-se em conta as distinções entre os modos de usar a língua informalmente, na oralidade ou na escrita, e os modos de usar a língua de forma monitorada, na interação oral ou na escrita formal.
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 Dito de outra maneira, o objeto da Pedagogia da Língua Portuguesa consiste na ampliação da competência comunicativa do usuário, de modo a incluir recursos linguísticos que lhe permitam comunicar-se em quaisquer condições de produção discursiva, atendendo às expectativas de seus interlocutores, as quais, por sua vez, são moldadas pelas crenças e valores vigentes na comunidade de fala.
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Considerando esse pressuposto, me posicionei diante de uma pergunta prática:
Se eu tiver que construir um programa de Pedagogia da língua, voltado para a ampliação da competência comunicativa do educando brasileiro, nas modalidades oral e escrita, que itens eu incluiria nesse Programa?  A minha reflexão me levou à seguinte seleção:
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1.     Mecanismos de coesão frásica da língua oral e da língua escrita:
a)    Topicalização do sujeito com ou sem pronome cópia:
      A gripe suína ela pode se transformar numa pandemia.
b)  Verbos haver e fazer impessoais:
Tivemos de enfrentar as dificuldades que houveram.
Fazem 40 anos que o homem chegou à lua.
c)   Regras variáveis de regência verbal com verbos de movimento:
A bola chegou no gol em 5 segundos.
Na cidade aonde eu nasci falta oportunidade de emprego.
d)   Regras variáveis de concordância nominal e verbal e as interseções com regras fonológicas:
Como será cobrado as obras literárias no Enem?
Segue os anexos que você pediu.
Os melhores jogador do Brasil vai jogar em time europeu.
O pessoal reclamaram da falta de organização do evento.
e)   Regras variáveis de interrogação e do uso de relativas:
O que que você prefere?
Onde é que eles foram?
A galera que eu tô saindo com eles é tudo gente boa.
A fazenda que eu nasci lá fica no Goiás.
2.    Mecanismos de coesão temporal e referencial:
a)   Simplificação da flexão modo-temporal:
Embora eu concordo com ele em quase tudo desta vez fiquei contra ele.
Ele pensô que o dinhero tava tudo no cofrinho.
Se você querer isso com força vai conseguir.
b)  Variação na morfologia verbal:
Tu visse?
Eles vinheru cedo.
Se eu ver te falo.
Ei, você aí, me traz esse cardápio.
c)   Neutralização dos pronomes sujeitos e objetos:
“Toca o berrante seu moço que é pra mim ficá ouvino”.
“Te carreguei no colo, menina, cantei pra ti dormir”
“Beija eu!
Beija eu!
Molha eu!
Seca eu! (Arnaldo Antunes e Marisa Monte)”
 “Quer ver a foca fazer uma briga? É espetar ela bem na barriga (Vinícius de Moraes)”
d)   Apagamento do pronome objeto:
– Quem já encontrou a palavra?  - Eu encontrei, professora.
e)   Ambiguidade no uso dos pronomes de terceira pessoa em cadeias anafóricas:
Chegou um deputado e um senador. Aí ele falou.
f)   Supressão dos clíticos:
Nós casamos já tem um tempão.
g)   Formas variantes do pronome de primeira pessoa do plural:
A gente fomos com eles.
“A gente somos inútil (Ultraje a rigor)”

Concluindo, por ora, este inventário é ainda preliminar. Será ampliado e ajustado no âmbito de um projeto que estamos iniciando. Só quisemos deixar nesta oportunidade nossa convicção de que a Pedagogia da Língua Portuguesa no Ensino Básico tem de levar em conta, prioritariamente, as diferenças entre os modos coloquiais de falar e os modos formais de falar e escrever. 

Brasília, 17 de julho de 2009.

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