terça-feira, 12 de julho de 2011

GONDIM, Márcia Regina Alves. Afetividade e Desenvolvimento: Uma questão de qualidade em Educação Infantil? (art.) Universidade de Brasília. Mestrado em Educação: 2004.

 
                                       RESUMO

A questão da afetividade leva-nos a repensar o tipo de homem e de sociedade que desejamos, buscando a dimensão do humano, onde a educação possa contribuir junto à construção da criança enquanto sujeito histórico, capaz e feliz, para que possamos encontrar o equilíbrio afetivo latente em cada um. Afetividade e aprendizagem caminham juntas na busca da qualidade em educação, e precisa iniciar-se nos primeiros anos de vida, em um processo de educação da infância e do sentimento.


                         Palavras – chave
Educação infantil      afetividade       desenvolvimento       aprendizagem


                                                    INTRODUÇÃO

Educar não é dividir em pedacinhos...
É viver na totalidade...
Madalena Freire
                                                                                                                                        
Compreender a importância de experiências significativas nos primeiros anos de vida nos leva a pensar nas necessidades infantis deste período, nas necessidades dos pais, no papel relevante do educador infantil e em sua função mediadora junto à compreensão da criança e de seu sentimento de infância, enquanto sujeito histórico.
Para tal é preciso romper velhos paradigmas projetados na sociedade, que tem se tornado insuficiente junto à compreensão do sentimento de infância. É preciso voltar o olhar para a criança enquanto sujeito, autor de sua própria história, percebendo que a vivência do hoje reflete o seu pensar sobre o mundo do qual está inserido. As ações dos educadores muito têm buscado o desenvolvimento dos aspectos cognitivos (o que é natural), esquecendo-se, entretanto da criança enquanto sujeito construtor de sua própria história, ator de um processo de vida, sujeito composto por sua totalidade.
E aqui penso em educação, onde afetividade possa entrelaçar-se ao desenvolvimento, em um processo onde os padrões de qualidade possam buscar o equilíbrio do ser humano de forma mais harmoniosa, possibilitando à criança oportunidades significativas de aprendizagem.
Para tanto, este trabalho tem por objetivo identificar como a afetividade interfere no desenvolvimento e na qualidade da Educação Infantil, percebendo o entrelaçamento existente entre ambos.
Assim, busco refletir sobre o papel da afetividade à luz das teorias de Jean Piaget, Henri Wallon e Vygotsky, analisando esta compreensão na ótica de uma educação de qualidade, onde a criança possa ter seus direitos preservados, ao ser embalado pela amorosidade da educação, que precisa cultivar seus desejos de vida. Junto aos estudos teóricos procuro desenvolver minha própria “escuta sensível” em busca de compreender o que pensam educadores da Educação Infantil ao referirem-se a questão do afeto enquanto fator de qualidade.

    



I - A  AFETIVIDADE NA CONSTRUÇÃO DO SUJEITO HISTÓRICO


 [...] o que tenho observado, sentido nas crianças (e em mim), como reflexo do nosso trabalho, é um grande entusiasmo, os desafios sendo enfrentados com alegria e paz. O que nos dá a certeza de que a busca do conhecimento não é preparação para nada, e sim vida aqui e agora.
                                                                                            Madalena Freire

Voltar o olhar para a escola é nos remeter as experiências significativas de aprendizagem. Relembrar o que nos causava medo, pavor, alegria e satisfação. Da infância guardamos os momentos afetivos que vivemos com o grupo, com a “tia”, com a escola. As experiências prazerosas foram arquivadas, quase que sublimadas em nossas mentes. E hoje, somos reflexo daquilo que construímos enquanto pequenos. E nossa visão de mundo, de homem e de sociedade esta espelhada nas relações estabelecidas com os outros (onde a escola tem importante papel).
Na concepção de alguns educadores a cognição é o aspecto primordial da educação. Hoje percebemos que este paradigma não é suficiente, pois compreendemos que a criança não é apenas uma parte, que é um todo, onde cognição, motricidade e emoção fazem parte da totalidade da vida.
E a vida precisa de seres humanos mais felizes, capazes de atuar no mundo de forma sensível, compreendendo seu papel enquanto sujeito que vive em constante transformação e que de forma dialética compreende sua própria incompletude. A escola precisa deixar marcas significativas que auxilie na construção de um mundo melhor, mais fraterno. É preciso educar para a sensibilidade.
Educar o sentimento é, através da prática, construir relações de afeto, onde as emoções possam ter espaço de respeito ao outro, na busca da amorosidade.
Escola é vida. E a vida está repleta de relações afetivas. E através de uma relação dialógica, onde o respeito ao outro permeie a relação entre ensinar e aprender que o afeto torna-se indispensável à arte de educar.
Em latim afeto é affectus (que significa afetar, tocar). Por meio desta definição podemos estabelecer uma relação com o cuidar e o acolher, compreendendo a necessidade existente em cada ser humano. Necessidade de ser ouvido, amado, respeitado, acolhido, onde educar seja o construir-se enquanto pessoa.
Para Codo (1999)  afetividade é o “conjunto de fenômenos psíquicos que se manifestam sob a forma de emoções, sentimentos e paixões, acompanhadas sempre de impressão de dor ou prazer, de satisfação, de agrado ou desagrado, de alegrias e ou de tristezas.”

Assim, buscamos aqui ressaltar o papel da afetividade na construção da criança enquanto sujeito histórico, compreendendo a importância de vivências prazerosas junto a seu desenvolvimento. Alertando educadores para a percepção de que vivências sofridas podem matar muitos desejos e assim cultivar a desesperança da vida.
Compreender a importância dos primeiros anos de vida é assegurar à criança uma educação de qualidade (vista aqui em seu sentido amplo). É perceber o papel da Educação Infantil enquanto espaço de oportunidades, onde a criança tenha acesso a estímulos para o desenvolvimento de suas potencialidades, com respeito às diferenças e às suas diversidades. É preciso compreender que falamos de uma Educação Infantil conivente com a dialética da vida, onde o sentimento de incompletude, movimento e transformação atendam as necessidades da criança, através de uma Educação Infantil em construção.
Compreender a Educação Infantil enquanto processo em construção é assegurar a seus profissionais o direito a uma educação continuada, que busque despertar neste educador uma atitude reflexiva junto a sua atuação.
Assim, ampliando o conceito de Educação Infantil, podemos compreender as necessidades das crianças que precisam estar entre o educar e o cuidar. Cuidar não apenas ao que se refere às questões biológicas, mas também ao que se refere às questões do afeto, da cognição e do desenvolvimento.
Aprender significa aprender estando na vida e para a vida. Não há preparação para nada. Aprende-se para atuar no hoje e no agora. Uma criança precisa ter preservado seus direitos a uma educação de qualidade, ser estimulada, amada, respeitada. Suas necessidades precisam ser respeitadas, as necessidades físicas, psicológicas, sociais, culturais e afetivas. É preciso educar o afeto. Dar a criança oportunidades de desenvolver um equilíbrio afetivo tornando-a um ser humano melhor.
Assim, compreendendo a importância da construção do afeto, busco analisar a afetividade sobre a ótica de algumas teorias entrelaçando-as enquanto complemento, ressignificando-as junto ao contexto social da educação infantil.
Para Piaget afetividade está vinculada ao juízo moral, voltando o olhar para as questões da heteronomia e da autonomia. Segundo ele é na ação moral que afetividade e razão se confrontam. A afetividade é vista como energia que impulsiona as ações. A razão seria aquilo que leva o ser humano a identificar desejos e sentimentos para se garantir a eficácia das ações. Piaget (apud LA TAILLE, 1992)  propõem harmonia entre afetividade e razão.

Piaget identifica duas morais. Na primeira, identifica afetos básicos como o medo e o amor. Na segunda, contudo, desaparecem referências a afetos, permanecendo apenas a noção de necessidade, produto genuíno da Razão. No campo moral, por conseguinte, o afeto dobrar-se-ia aos ditames da Razão (La Taille, 1992:72).

Na percepção de Piaget (apud LA TAILLE, 1992) podemos ressaltar a questão da autonomia, mostrando-nos como a inteligência, através do campo moral, coordena o campo afetivo.
Aprender liga-se ao desejo e ao prazer. Experiências desejadas e prazerosamente vividas levam o indivíduo a uma significação junto às construções de suas aprendizagens.
Em Vygotsky (apud LA TAILLE, 1992) encontramos abordagens voltadas para a unidade entre os aspectos ligados a cognição e o afeto, junto ao desenvolvimento psicológico humano, ao apontar as questões sociais, a relação com o outro, a aprendizagem mediada.
Para Wallon (apud LA TAILLE, 1992) a dimensão afetiva é de fundamental importância para a formação da pessoa humana. Wallon propõe uma psicogênese da pessoa completa, onde afeto, cognição e desenvolvimento-motor entrelacem-se a esta construção. A emoção possui raízes na vida orgânica, possuindo componentes vegetativos nos estados emocionais. A atividade emocional para ele é social e biológica por si mesmo, podendo sofrer interferência da mediação cultural. A consciência afetiva é formada pelas primeiras manifestações da vida orgânica, servindo-se de instrumento junto à atividade cognitiva. Sua teoria “a Teoria das Emoções” é considerada dialética para que possa acompanhar as mudanças funcionais dos seres humanos. Ressalta a questão do prazer e o papel das emoções, onde a afetividade é vista como “componente permanente da ação” (Dantas, 1992:88). Assim a educação da emoção necessita estar entrelaçada aos propósitos da ação pedagógica.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                     
Wallon (DANTAS, 1992) defende a idéia de que o ser humano passa do estágio puramente orgânico para o afetivo. Afetividade e inteligência entrelaçam-se, onde suas reciprocidades repercutem-se constantemente, gerando momentos integrados de desenvolvimento.
Em princípio a afetividade volta-se apenas para questões da emoção: “afetividade somática”, onde as trocas afetivas dependem da presença do outro (toque, entonação da voz), incorporando em seu processo de oralidade, depois de escrita.
A construção do sujeito se faz nos momentos afetivos do desenvolvimento, através da interação com os outros, elaborando-se através da cultura. Assim, a construção do conhecimento depende da contextualização da construção do sujeito, através da mediação social.
A mediação social está, pois, na base do desenvolvimento: ela é a característica de um ser que Wallon descreve como sendo “geneticamente social”, radicalmente dependente dos outros seres para subsistir e se construir enquanto ser da mesma espécie. (DANTAS, 1992:92).

Sob a influência do meio em que vive, desde os primeiros momentos de vida, a inteligência é nutrida pela afetividade, onde ambas formam uma ponte entre si, abrindo caminhos para a construção do “eu” existente em cada um, em uma visão dialética. O ser humano necessita de sedução, da admiração do outro junto à construção de si mesmo. Daí a importância do reconhecimento, do acolhimento, de uma “escuta sensível” às suas próprias necessidades, o respeito à diversidade de idéias. A diferenciação da pessoa é fator importante junto ao progresso da inteligência, pois aprende-se com o outro, em um processo de acolhida, de interação, de transmissão. Assim a construção do objeto abre espaços para a construção da pessoa. E a construção da pessoa torna-se uma “autoconstrução”.
Ao referir-se aos primeiros momentos de vida, encontramos em Wallon a importância do vínculo afetivo suprindo a insuficiência da inteligência:
... o contágio afetivo cria os elos necessários à ação coletiva. Com o passar do tempo, a esta forma primitiva se acrescenta a outra, mas, em todos os momentos da história individual, o ser humano dispõe de recursos para associar-se aos seus semelhantes. (DANTAS, 1992:97).

Ao analisarmos o ser humano enquanto pessoa completa voltamos o olhar para a construção do “eu”, onde o afeto permeia as variadas construções do ser humano. A criança da educação infantil precisa libertar-se das amarras das concepções arcaicas, onde a cognição (e apenas ela) é vista como objetivo central da educação. É preciso compreender que sua vida é agora, que é preciso educar e cuidar em uma perspectiva afetiva, para que ela construa significações em suas aprendizagens. E que suas aprendizagens sejam de vida, vivendo o hoje, assumindo-se enquanto sujeito-histórico, construtor de sua própria história de vida.


II – AFETIVIDADE E DESENVOLVIMENTO: UMA PARCERIA DE QUALIDADE

Uma outra forma de ver o conceito de qualidade é considerá-lo como algo negociado e aberto ou construído e em permanente construção (SOUSA, 1998).

Pensar em qualidade em educação infantil é estabelecer padrões que possibilite a construção do ser humano em sua totalidade. Qualidade em classes de educação infantil é um processo que está em construção.
Segundo Barreto (2004) é preciso perceber que qualidade em Educação Infantil não se refere apenas a uma qualidade, mas as variadas qualidades, necessárias a construção da pessoa. É preciso pensar na várias faces da qualidade.
Qualidade em Educação Infantil não é apenas garantir o direito ao acesso da criança a escola, mas é observar vários fatores que interferem em sua formação, garantindo-lhe a permanência dentro dela. Podemos observar a proporção procura/oferta, a razão adulto/criança, a dimensão do cuidar e do educar.
Katz (2004) aponta, para a necessidade de qualificação e de educação continuada do educador, visto que a educação possui uma dialética que está em constante transformação, tornando-se necessário o acompanhamento da própria evolução da vida. Aponta, ainda para a necessidade de políticas públicas que garantam as condições necessárias para uma educação de qualidade.
Assim, a qualidade passa não apenas por questões físicas, mas também por questões baseadas entre o cuidar e o educar, ressaltando a necessidade de vivências prazerosas e significativas junto à construção das mais variadas faces da aprendizagem.
Qualidade em educação perpassa pela parceria dos pais, as condições necessárias e, sobretudo pela ação dos profissionais, que precisam compreender a importância da construção de um sujeito histórico, possibilitando uma relação prazerosa, onde afeto e cognição caminhem imbricados na busca de construções do conhecimento e do equilíbrio da vida afetiva.
Buscar a relação entre desenvolvimento e afetividade nos remete a questão do educar e do cuidar. Em seu sentido amplo, qualidade em Educação Infantil busca contemplar estas duas dimensões.
Qualidade em Educação Infantil refere-se a critérios objetivos tanto quanto a critérios da subjetividade do ser humano, o que pensam e sentem. Neste sentido encontramos o papel da afetividade. Afetividade vista como mola propulsora do desenvolvimento.
Nesta perspectiva, qualidade em Educação Infantil volta o olhar para a qualidade de vida do ser humano, tornando-se seu principal aspecto.
Pensar em qualidade de vida nos remete a teoria de Wallon, em sua psicogênese da pessoa completa, onde a emoção tem papel fundamental associando inteligência ao afeto.
Assim várias são as possibilidades de padrões que contribuam junto à qualidade da Educação Infantil. Urge, porém, a compreensão da importância de uma educação continuada, que contemple o entendimento de pessoa humana como um todo, onde cognição, desenvolvimento motor e afeto estão interligados. Tornando possível uma educação onde a criança possa viver sua infância de forma prazerosa, construindo experiências significativas, compreendendo-se enquanto sujeito de sua própria história e atuando sobre sua realidade social de forma mais humana e sensível.
Os caminhos que levam a construção de uma educação de qualidade em classes de Educação Infantil precisam assegurar a criança uma qualidade de vida digna, para isto torna-se necessário re-olhar para a criança enquanto sujeito histórico, na perspectiva de vê-la como pessoa completa, onde cognição, emoção e força motriz fazem parte desta totalidade humana, re-olhando a criança enquanto pessoa por inteiro e em suas subjetividades.
É preciso educar para a sensibilidade. Compreender as dimensões afetivas e cognitivas no contexto de qualidade é oferecer a criança possibilidades de tornar-se sensível aos dramas da sociedade e do mundo que a cerca.






III – DA TEORIA A PRÁTICA: A CONSTRUÇÃO DE UMA ESCUTA SENSÍVEL

 O que as pessoas mais desejam é alguém que as escute de maneira calma e tranqüila. Em silêncio. Sem dar conselhos. Sem que digam:"Se  fosse você...”A gente ama não a pessoa que fala bonito. É a pessoa que escuta bonito. A fala só é bonita quando ela nasce de uma longa e silenciosa escuta. É na escuta que o amor começa. E é na não escuta que ele termina (Rubem Alves, 2002).

As dimensões do cuidar e do educar nos remetem a um novo olhar sobre a criança, onde inteligência cognitiva e inteligência emocional completem-se.
A dimensão do cuidar é olhar para as necessidades da criança, de seus desejos e necessidades, físicas, cognitivas e afetivas.
É olhar o outro em todas as suas dimensões, buscando o que há além de sua presença física, é olhar com os olhos da alma.
Em uma classe de Educação Infantil por mim observada, ouvi o relato de uma criança durante a rodinha: “nesta sala eu me sinto respeitada...” Penso na dimensão de afeto que esta professora presenteia sua turma. Pergunto pela questão cognitiva desta criança. A professora relata sua história de vida acadêmica. É uma criança que aprendeu a ler. Sentia muitas dificuldades de relacionamento na classe anterior. É a teoria da emoção de Wallon entrando em cena.
Torna-se necessário ampliar o campo conceitual da criança, oferecendo a ela oportunidades, estímulos variados, respeitando suas diversidades culturais e lingüísticas, aproveitar suas histórias de vida direcionando-as para a construção de muitas outras histórias. Contudo não se pode esquecer de que nascemos para aprender. E que para aprender é preciso seduzir, encantar. A grande mola propulsora da aprendizagem está justamente aí, no encantamento daquele que ensina e daquele que aprende. E em uma cumplicidade entre ensinar e aprender é preciso articular o desejo. O desejo que desperta o prazer, que funciona como o grande estímulo de ordem afetiva.
E assim o educador infantil precisa primeiro ser um grande apaixonado pelo conhecimento, pela descoberta, pela vida... E só assim, articulando desejo e descoberta, a aprendizagem ganha significações. Através de experiências desejadas a criança pode alcançar o patamar da inclusão, reconhecendo-se como sujeito de um processo de vida.
Ao analisar o que pensam os professores do curso Pedagogia para Início de Escolarização - PIE- UNB/SEEDF- 2001/2005 - sobre a questão do afeto, percebo que ambos referem-se a sensibilidade e sua relação com o conhecimento:
“... é saber ouvir o outro, sensibilizar-se com as dificuldades do outro, procurando o que cada um tem de melhor....”
“É a base que sustenta as relações que se desenvolvem entre os processos de ensinar e aprender.”
“Antigamente eu achava que afetividade era apenas aproximação física, hoje penso que envolve não só o corpo, mas também a alma da pessoa....”
“... maneira de insinuar o sentimento.”
“Forma de demonstração de carinho, de identificação com o outro e consigo, relação de aceitação.”

Em ambas as representações sobre afetividade os educadores percebem a amplitude deste conceito, estabelecendo vínculo entre sujeito e a necessidade de uma escuta sensível. Todos trazem através de suas escritas uma compreensão do “outro” enquanto sujeito e não assujeitados.
Ambos referiram-se ao espaço da “rodinha” enquanto espaço de escuta, a importância do toque, do abraço, do acolhimento.
Em uma classe por mim visitada presenciei a “hora da rodinha” enquanto espaço de construção da pessoa humana, onde a professora desenvolvia uma escuta sensível, ouvindo cada criança, que tinha garantido seu turno de fala, onde todos tinham suas diferenças respeitadas. E a professora chamava atenção para o espaço do outro, em uma atitude de respeito.
Ambos os professores reconhecem a afetividade com fator de aprendizagem, a importância da construção do autoconceito e de suas auto-estimas. Em suas percepções a criança ao ser acolhida e amada torna-se segura ao enfrentar o mundo que a cerca.
Uma das dificuldades citadas refere-se à dificuldade do toque físico, caracterizando aí um adulto que certamente pouco sentiu o carinho de seus pais, seus toques, em uma construção que certamente não ocorreu em sua infância. Comprovando que tudo o que somos é resultado de nossa infância. Comprovando, aí, a importância dos primeiros anos de vida de um ser humano junto as suas aprendizagens. E a afetividade também é uma construção.
Ao que se refere “a melhora da relação afetiva”, percebo a questão do “afeto próprio” da aceitação de si mesmo. Observo que há muitas questões não resolvidas entre educadores infantis. Que aí também se faz necessário uma construção do afeto. Seria tarde? Acho que ainda é possível.
Ouço suas necessidades e como mediadora torno-me mais reflexiva. Onde poderia interferir? Talvez com meu afeto. Somos todos sujeitos em construção. Sujeitos de uma história de vida. E quantas vidas sem afeto observei.
Entre os adultos este é um grande problema. Eles reconhecem a importância da afetividade junto à construção do conhecimento e, entretanto, ambos dizem ter dificuldades neste campo.
Lembro de uma classe que a cada dia, no horário da videoteca, uma criança ficava no colo da professora, onde o toque era muito importante. Ali a educação do sentimento se fazia presente. Na hora da história as crianças sentavam-se bem próximas à professora e algumas ficavam ali, passando a mão nos cabelos dela. Nesta classe todos eram elogiados em suas habilidades. A cada um era dado um elogio de acordo com suas potencialidades.
Havia beijos pelas ações de cada criança. Na hora das atividades, de bingo, leitura, jogos variados, sempre havia balinhas para adoçar os sonhos e as aprendizagens de cada uma. Todas ganhavam. Era o prazer de estar na escola. Presenciei crianças indo para a escola com febre. E o mais lindo de tudo: a fantástica descoberta do mundo das letras. Cada um, em seu tempo, foi descobrindo as significações, construindo o prazer de aprender, através do afeto.
A afetividade encontra papel fundamental nas relações de aprendizagem. A escola precisa tornar-se ambiente acolhedor para que a criança encontre confiança naquele com a qual convive, pois na perspectiva de Piaget, padrões de comportamentos intelectuais implicam em padrões afetivos.
Presenciei uma atividade denominada “trilha da confiança”. As crianças caminhavam em fila, de olhos fechados, amparadas pelo colega que estava na frente. Nesta atividade a professora procurava desafiar as crianças a construírem um clima de integração e afetividade, estimulando a confiança, o equilíbrio, o respeito mútuo, pois cada criança estava sendo levada pelo colega, resgatando a necessidade e a responsabilidade do outro,  na construção das mais variadas aprendizagens de vida. A relação eu/outro, mediada pela professora junto à construção de aprendizagens, nos remete a teoria de Vygotsky.
Nas atividades de parquinho a professora observa as atitudes da cada criança. Suas habilidades e sociabilidades. E a professora procurava interferir apenas quando solicitada, atuando mediaticamente quando necessário. A professora lança um olhar reflexivo e contemplativo sobre cada criança, demonstrando seus muitos “desejos de vida”. Analisa suas interações, registra seus avanços e descobertas.  Incentiva e estimula a auto confiança de cada uma, buscando a construção de suas autonomias, em clima afetivo e de troca mútua.
As atividades por mim observadas mostram a importância do acolhimento e do incentivo perante as construções das crianças, resultado do papel da afetividade que norteia as relações entre aprender e ensinar, onde o professor precisa compreender que cada criança possui um processo de construção do conhecimento com ritmos próprios, onde o fazer pedagógico seja entrelaçado a amorosidade da vida.

A afetividade, que inclui sentimentos, interesses, impulsos tendências (tal como a “vontade” e valores), constitui fator energético de padrões de comportamento, cujos aspectos cognitivos se referem somente às estruturas. Wadsworth (2001:165)


Observa-se aí o pensamento de Piaget (apud, WADSWORTH, 2001:165) ao referir-se aos padrões de comportamento, afirmando que: “Os padrões de comportamento intelectual que pareçam ser, sempre implicam padrões afetivos como motivos”.
Ensinar e aprender pressupõe sujeitos desejantes, portadores de cognição, razão, movimento e emoção, com histórias de vida diversas, inseridos em um mundo que a cada momento suscita novas informações, onde a descoberta se dá a cada momento e tanto docentes quanto discentes possam assumir, prazerosamente, seus papéis.
Ao observar produções escritas encontro bilhetinhos redigidos pelas crianças que expressam a amorosidade despertada em cada criança. Esta relação de afeto pode ser analisada na singeleza das palavras escritas por Victória - 6 anos, que estando silábica- alfabética (segundo a teoria de Emília Ferreiro (2001), expressa seus sentimentos, demonstrando seu processo de letramento:

... EUTIAMO VOCE E A RAINHA DITODAS ASIESCOLA E A DEUZA DE TODAS AS MENINAS E DTOSO MENINOS E TODOSO BAICHINHO E BAICHINHA E DOS GAROTINHOS E VOCE E MINHA RAINHAE MITANBEM... Victória-6 anos 

[ ... eu te amo. Você é a rainha de todas a escola e é a deusa de todas as meninas e todos os meninos. E de todos os baixinhos e baixinhas e dos garotinhos... Você é minha rainha também].

Ou ainda no bilhetinho de Jefferson – 6 anos

... tia... eu i meus amigos te adoramos... você tia Márcia obrigado pelo micina aiscreve i tamei ale... eu tiamo

[... tia... eu e meus amigos te adoramos, você tia Márcia. Obrigado por me ensinar a escrever e também a ler... Eu te amo...].

As produções que em princípio parecem estranhas resultam de processos de aprendizagem envolvidas em grande volume de afetividade e de sentimento, possuindo uma forma própria de pensar a escrita.
Na análise de documentos de outra criança que hoje se encontra adolescente, encontrei ainda:

... as letras que eram só rabiscos, hoje já conseguem ser lidas, estou treinando para ver se sai mais ou menos. (...) É bom poder saber que hoje o que sei, as cores da vida; o sentido das letras juntas que formam sentimentos expressados através de pessoas que nos ensinam a trilhar e a dar passos no degrau da vida, devo a você .(Raquel, 18 anos. Ex-aluna de educação infantil...)

Ou ainda no poema de Juliana:

Amar
Tia Márcia, amar,
não podemos deixar de amar, sonhar, desejar, viver, amar, prevalecerá...
Eu, como todas as crianças inocentes,
que aprendeu com essa grande mulher aprender
a ser gente, a ser responsável,
a ser uma pessoa inigualável.
Aprendi que sonhar não é pecar,
que o tempo, é mudar de comportamento.
É crescer,
dizer o que pensa, agir.
É viver.
Aprendi a valorizar a minha vida,
que somos uma sementinha..
Que deve ser cultivada, criada
e que precisa de amor, de pessoas
assim como você: linda educada, simpática e inteligente, que passe tudo de bom, que          passe também experiência.
Márcia; não consigo chamá-la assim, para mim você é, e
Sempre será a minha tia Márcia!
Te amo...
(Juliana – 15 anos, ex- aluna de Educação
Infantil)



Junto à simplicidade destas palavras percebe-se a afetividade presente em seus processos de construção do conhecimento e de descoberta da vida. A acolhida que busca tornar a criança confiante em suas próprias capacidades, em suas auto-estimas. Envolvidos pela emoção, os textos retratam a forma simples de gostar, onde cada criança inicia sua trajetória de educar o sentimento, tornando-se capaz de tornar-se afetuoso (pois amar também é uma aprendizagem), demonstrando uma trajetória prazerosa e feliz.
A relação entre professor e aluno necessita de “desejos de vida”, onde ambos possam descobrir a significação da vida em uma grande paixão de aprender. A dimensão do afeto precisa ser despertada não apenas nas crianças, mas também em seus educadores.
Também entre alunos adultos a teoria se confirma, pois encontrei em uma dedicatória esta noção do sentimento:

... que Deus conserve em você essa energia tão boa a tão fácil de ser sentida! Um abraço da aluna Regiane..

 A professora aqui presente demonstra uma construção de vida, onde sua escuta é construída na perspectiva do outro, incorporando acolhimento, afeto e sensibilidade, onde seu coração abre-se para as necessidades do outro, expressas no cuidado inspirado em cada criança ou daquele com a qual convive, onde sua forma simples de escutar procura voltar o coração para o outro e seus sentimentos.
Em todas as expressões colhidas observa-se a intensidade da relação entre aprender e ensinar, onde docente e discente aprendem juntos, na convivência, no afeto, no prazer de estar na escola. A proximidade entre ambos mostra-nos que construir conhecimentos podem ser atos de amor, em uma amorosidade que precisa buscar a qualidade de vida.





                                                           CONSIDERAÇÕES


 Ao refletir sobre afetividade e desenvolvimento, este trabalho busca abrir as portas para a questão da qualidade de vida.
É preciso perceber a importância dos primeiros anos de vida, do direito a uma educação de qualidade. Qualidade vista aqui em seu sentido mais amplo. Somente uma Educação Infantil de qualidade pode assegurar a criança um amplo desenvolvimento de suas potencialidades motoras, intelectuais e afetivas.
Ao re-olhar a criança enquanto sujeito histórico, a escola estará assegurando a ela a participação efetiva enquanto cidadão, hoje. Cuidar e educar entrelaçam-se as necessidades da criança, que precisa ter assegurada não apenas o acesso à escola, mas sua permanência dentro dela, em um processo onde a qualidade de vida seja seu grande objetivo.
Construir aprendizagens é buscar a dialética da vida, em um movimento de incompletude que nos levam a novas aspirações. É compreender que somos seres incompletos em uma busca imanente de novos saberes. É preciso educar o afeto, suscitando desejos de vida, que impulsione as mais variadas faces da aprendizagem.
Compreender as relações existentes entre afetividade e aprendizagem nos leva a certeza de que é preciso oportunizar a criança uma escola de qualidade, onde o cuidar e o educar entrelacem-se na busca do desenvolvimento do ser humano.
E o desenvolvimento do ser humano precisa encontrar suas dimensões afetivas para que possamos construir uma sociedade melhor, mais humana, onde as pessoas possam resgatar a dimensão do afeto e do outro, em uma perspectiva de inclusão, onde todos tenham direitos a uma vida de qualidade.
E assim possam tornar-se sujeitos construtores de suas próprias histórias, sentindo-se capazes de interferir de forma cidadã nos caminhos da sociedade do qual fazem parte.
 

                                       REFERENCIAL  BIBLIOGRÁFICO


CODO, Wanderley/ Gasotti, Andréa Alessandra. Trabalho e afetividade. In: CODO, Wanderlei (cood) - Educação, Carinho e Trabalho. Rio de Janeiro: Vozes, 1999.

CORRÊA, Bianca Cristina-Considerações sobre Qualidade em Educação Infantil (art.), 2004.

Educação Infantil: Desafios da Qualidade na Diversidade. Brasília, (mimeo). SESI/DN, Brasília. Agosto, 1998. Maria de Fátima Guerra de Sousa.

FREIRE, Madalena. A Paixão de Conhecer o Mundo. Rio de Janeiro: Vozes,1992.

GALVÃO, Isabel – Henri Wallon – Uma Concepção Dialética do Desenvolvimento Infantil. Rio de Janeiro: Vozes, 1995.


Multiple Perspectives on Quality of Early Childhood Program – Lilia Katz/ Eric Digest / Versão em Português: Cinco Perspectivas Sobre a Qualidade – Lília Katz  Disponível em:

LA TAILLE, Yves de, 1951- Piaget, Vygotsky, Wallon: TeotiasPsicogenéticas em Discussão/ Yves de La Taille, Marta Kohl de Oliveira, Heloysa Dantas. São Paulo: Summus, 1992.


SALTINI, Cláudio J. P. – Afetividade Inteligência- A Emoção na Educação. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2002.


 Wadsworth, Barry. A inteligência e Afetividade da Criança: Na teoria de Piaget – Esmeria Rovai. São Paulo: Pioneira, 2001.

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