terça-feira, 26 de julho de 2011

Rubem Alves - Meu coração fica junto ao coração dela - Uma Contribuição da Professora Rosimeiry Santos




“A boca fala do que está cheio o coração”: esse é um ditado da sabedoria judaica, que se encontra nas Escrituras Sagradas.  Bem que poderia ser a explicação sumária daquilo que a psicanálise tenta fazer: ouvir o que a boca fala para se chegar ao que o coração sente. Acontece comigo. Cada texto é uma revelação do coração de quem escreve.
 Pois o meu coração ficou cheio com uma coisa que me disse minha neta Camila, de onze anos. O que ela falou fez meu coração doer.  Como resultado fico pensando e falando sempre a mesma coisa.
A Camila estava na sala da televisão sozinha, chorando. Fui conversar com ela para saber o que estava acontecendo. E foi isso que ela me disse: “Vovô, quando eu vejo uma pessoa sofrendo eu sofro também. O meu coração fica junto ao coração dela...”
Percebi que o coração da Camila conhecia aquilo que se chama “compaixão”. Compaixão, no seu sentido etimológico,  quer dizer “sofrer com”. Não estou sofrendo. Mas vejo uma pessoa sofrer. Aí eu sofro com ela. Ponho o outro dentro de mim. Esse é o sentido do amor: ter o outro dentro da gente. O apóstolo Paulo escreveu que posso dar tudo o que tenho aos pobres,  mas se me faltar o amor, nada serei. Porque  posso dar com as mãos sem que o coração esteja a sentir. A compaixão é uma maneira de sentir. E dela que brota a ética. Alguém foi se aconselhar com Santo Agostinho sobre o que fazer numa determinada situação. Ele respondeu curto e definitivo: “Ama e faze o que quiseres.” Pois não é óbvio? Se tenho compaixão nada de mal poderei fazer a quem quer que seja.
Fernando Pessoa escreveu um curto poema em que  descreve a sua compaixão. Por favor, leia devagar:  “Aquele arbusto fenece, e vai com ele parte da minha vida. Em tudo quanto olhei fiquei em parte. Com tudo quanto vi, se passa, passo. Nem distingue a memória do que vi do que fui”. Compaixão por um arbusto... Ele explica esse mistério da alma humana dizendo que  “em tudo quando olhei fiquei em parte. Com tudo quanto vi, se passa passo...” Os olhos, movidos pela compaixão, o faziam participante da sorte do pequeno arbusto...
Eu já sabia disso. Mas nunca havia enchido o meu coração ao ponto de doer. Doeu porque liguei a fala da Camila a essa tristeza que está acontecendo no Brasil.
Os corruptos são homens que passaram pelas escolas, são portadores de muitos saberes. Tendo tantos saberes, o que lhes falta? Falta-lhes compaixão. 
A falta de compaixão é uma perturbação do olhar. Olhamos, vemos, mas a coisa que vemos fica fora de nós. Vejo os velhos e posso até mesmo escrever uma tese sobre eles, se eu for um professor universitário. Mas a tristeza do velho é só dele, não entra dentro de mim. Durmo bem. Nossas florestas vão aos poucos se transformando em desertos mas isso não me faz sofrer. Não as sinto como uma ferida na minha carne. Vejo as crianças mendigando nos semáforos mas não me sinto uma criança mendigando num semáforo. Vejo os meus alunos nas salas de aulas, mas meu dever de professor é dar o programa e não sentir o que os meus alunos estão sentindo.
De que vale o conhecimento sem compaixão? Todas as atrocidades que caracterizam os nossos tempos foram feitas com a cumplicidade do conhecimento científico. Parece que a inteligência dos maus é mais poderosa que a inteligência dos bons.
 Sabemos como ensinar saberes. Há muita ciência escrita sobre isso. Mas não me lembro de nenhum texto pedagógico que se proponha a ensinar a compaixão. Talvez o livrinho de Janucz Korczak  Como amar uma criança . Mas Korczak é uma exceção. Ele sabia que para se ensinar algo a uma criança é preciso amá-la primeiro. Korczak era um romântico... Por isso o amo...
Aí fiz a mim mesmo uma pergunta pedagógica: “Como ensinar a compaixão? Conversando sobre isso com minha filha Raquel, arquiteta, ela se lembrou de um incidente dos seus primeiros anos de escola, quando menina de sete anos. Seria o aniversário da faxineira, uma mulher que todos amavam. A classe se reuniu para escolher o seu presente. Ganhou por unanimidade que, no dia do seu aniversário, as crianças fariam o seu trabalho de faxina. Disse-
me a Raquel que a faxineira chorou...
Sei que as crianças aprendem com o olhar, o olhar das professoras. Elas sabem quando as professoras as olham com os mesmos olhos com que Fernando Pessoa olhava o arbusto. Sei também que as estórias provocam  compaixão, quando o leitor se identifica com um personagem.  Sei de um menininho que se pôs a chorar ao final da estória O patinho que não aprendeu a voar. Ele teve compaixão do patinho. Identificou-se com ele. Vai carregar o patinho dentro de si embora o patinho não exista. Lemos estórias para as crianças e para nós mesmos não só para ensinar a língua mas para ensinar a compaixão.
Mas continuo perdido. Preciso que vocês me ajudem. Como se pode ensinar a compaixão?
Rubem Alves  

Nenhum comentário:

Postar um comentário