sábado, 16 de julho de 2011

O vôo da Asa Branca: uma reflexão sobre a Linguística e o Ensino de Língua Portuguesa - Dioney Moreira Gomes*


A presença da Linguística nos currículos de Letras é um fato tão importante quanto a presença da Literatura e da Produção/Recepção de Textos. O encontro com essa área do conhecimento é mais uma novidade que o futuro professor de português terá durante o seu percurso acadêmico e, talvez, seja a mais contundente e inesperada. Boa parte daqueles que ingressam em um curso superior de Letras espera encontrar o caminho mágico para entender as regras da gramática e se tornar um mago das nomenclaturas viciadas e inexpressivas. Mas o sonho de se tornar um professor Pasquale ou uma professora Dad começa a desaparecer quando entra em sala o professor de Introdução à Linguística. Este traz consigo um conhecimento diferente daquele expresso pelos professores citados, um conhecimento científico.
A Linguística é a ciência que estuda a linguagem, seja enquanto capacidade orgânica e abstrata do ser humano, seja enquanto representação concreta dessa capacidade em atos de fala. Essa definição não tem nada de original, mas traz em si uma série de questões: o que é ciência; o que é linguagem; o que é língua. Não pretendo aqui dar uma aula sobre as características que atribuem cientificidade aos estudos lingüísticos, nem discorrer sobre a concepção de língua/linguagem nas principais tendências teóricas atuais. Gostaria apenas de mostrar como o conhecimento lingüístico pode ajudar a ler um texto. É um olhar crítico-científico que se propõe aqui. Para isso, escolhi a letra da música Asa Branca, que abaixo apresento:


ASA BRANCA (Luís Gonzaga e H. Teixeira)
Quando oiei a terra ardendo
Qual fogueira de São João,
Eu preguntei a Deus do céu, ai,
Por que tamanha judiação...
Hoje, longe muitas légua,
Numa triste solidão
Espero a chuva cair de novo
Pra mim vortá pro meu sertão.


Que braseiro, que fornáia

Nem um pé de prantação
Pru farta d’água perdi meu gado
Morreu de sede meu alazão...
Quando o verde dos teus óio
Se espaiá na prantação,
Eu te asseguro, num chore não, viu
Que eu vortarei, viu, meu coração...


Inté mesmo a asa branca
Bateu asas do sertão
Entonce eu disse adeus, Rosinha,
Guarda contigo o meu coração...



Escrita em 1947, essa música é um dos representantes mais expressivos da saga de um povo, o povo nordestino. É uma expressão popular dos movimentos migratórios, dos sentimentos aí envolvidos, da esperança de dias melhores. Mas ela não foi cunhada em linguagem formal, não aparecem aí as marcas dialetais prestigiadas na escola. Uma vez, ouvi um professor de gramática dizer que jamais, em seus 30 anos de carreira, se utilizou dos poemas de Drummond em suas aulas. Perguntado o motivo, ele respondeu: “Não uso texto de alguém que não sabe escrever”. O verso “tinha uma pedra no meio do caminho” foi o que o levou a pensar que Carlos Drummond de Andrade não sabia escrever! O que pensaria, então, da letra de Asa Branca, o dito professor? Para ele, haveria erros de várias naturezas, pois seu olhar limitado não seria capaz de explicar os fatos lingüísticos presentes na música. Fatos de natureza fonética, morfológica, sintática, histórica, que apresento, brevemente, a seguir.
Um fenômeno que salta aos olhos (e aos ouvidos!) é o uso sistemático de “i” no lugar de “lh”: oiei, fornáia, óio, espaiá. Fiz questão de usar a palavra “sistemático” para defender que não existe erro quando um fenômeno faz parte do sistema lingüístico de um grupo de falantes. O fenômeno em questão é a palatalização, que teve como resultado a total assimilação do “lh” pelo “i”. Qualquer manual de história da língua portuguesa mostrará que, devido à palatalização, surgiram em nossa língua quatro consoantes que não existiam no sistema de fonemas do latim (língua-mãe do português), dentre elas o próprio “lh” e o “nh”. Essa evolução não estacionou e, hoje, esses dois sons tendem a ser completamente assimilados pelo “i”. Encontramos, assim, as pronúncias “muié” (<“mulher”), “fio” (<“filho”), “sõio” (<“sonho”), “bãia” (<“banha”). Logo, não é de se estranhar (“estrãiá”!) que, sistematicamente, Gonzagão e milhares de outros brasileiros façam uso dessa variante lingüística. Passemos a outro fenômeno.
Não poderia deixar de falar da mudança regular do “l” para “r”: prantação, farta, vortá e vortarei. Estamos diante do rotacismo: a mudança de uma consoante para “r”. Dentre vários outros, nomes como “igreja” tinham em latim um “l” originalmente: ecclesia. Isso significa que esse também é um fenômeno comum numa língua e que se faz presente no português há muitos séculos. Dois dos nomes mais importantes da literatura em nossa língua tinham em sua variante lingüística a troca do “l” pelo “r”. Falo de Luís de Camões e do nosso Machado de Assis. Mais uma vez, não há nada de mais na forma de falar do nosso querido Gonzagão, que também é Luís.
No âmbito da morfossintaxe, um fato chama a atenção: muitas légua, teus óio. A ausência da marca de plural “-s” em “légua” e em “óio” levaria qualquer professor de português despreparado a apontar sua artilharia pretensamente pesada para esse fato. O conceito de concordância é um dos motivos da discórdia aqui: marcas morfológicas de uma palavra são repetidas em outras, revelando uma relação harmônica entre elas. Faltaria, então, concordância, harmonia nos exemplos citados? A resposta é não. Ocorre aí a forma atual da concordância nominal de número no português do Brasil: marca-se o plural no primeiro elemento do sintagma, do conjunto. Essa regra é apenas diferente da regra prevista na língua – supostamente – ensinada na escola. Vivemos um conflito mais que secular: falamos naturalmente uma língua e somos repreendidos para falarmos outra, que está artificialmente registrada em um livro denominado gramática. Neste momento, não há como eliminar esse conflito, mas uma mudança essencial se faz necessária: é preciso criar uma tolerância quanto aos usos que a língua portuguesa permite. Se muitas léguas traz uma regra morfossintática a aprender e a usar convenientemente, muitas légua também evidencia uma regra, uma inovação (já muito antiga!), que merece respeito e compreensão científica. Não basta vociferar em nome da tradição e dos bons costumes gramaticais. Um profissional da área de Letras deve saber identificar um fenômeno, contextualizá-lo, explicá-lo e mostrar ao seu aluno o valor que ele tem.
Ao ouvir Asa Branca cantada por outros intérpretes, percebi que eles mudaram, quase sem exceção, o último verso da quarta estrofe. Em lugar de Pra mim vortá pro meu sertão, cantam Pra eu voltar pro meu sertão. Querem eles mostrar que aprenderam direitinho a lição: “mim não faz nada”. Se perguntados por que mudaram a letra registrada em 1947, certamente responderiam: “Mim é coisa de índio”. Duplo preconceito, incitado por um professor de português despreparado para lidar com o fenômeno em questão. Os ditos letrados, que se consideram capazes de ler e escrever, embora recentes pesquisas do Instituto Paulo Montenegro revelam que 75% dos brasileiros não sabem ler e escrever direito, se valem de alguns conhecimentos decorados para mostrar uma erudição de tipo “castelo de areia”. E o fenômeno? O uso de mim ocorre depois de para (pra) em outros contextos: “deu o presente pra mim”; “falou isso pra mim”. O uso desse pronome no contexto do verso citado não é nenhuma novidade, nem uma raridade no Brasil. É, ao contrário, sistemático e regular. As palavras eu, mim, me, ego têm um só referente: “eu”. Diante de vários caminhos (ou sentidos em Semântica Formal), a escolha de um deles para ocupar a posição de sujeito verbal e de outro para ocupar a função de complemento verbal foi uma realidade fixa no passado, o que levou a gramática a dividi-los em pronomes do caso reto (eu, tu, ele...) e pronomes do caso oblíquo (me, te, mim, ti...). Essa divisão traz uma herança latina evidente: os casos – “formas distintas que podem apresentar em muitas línguas um nome ou um pronome segundo a função sintática”. Essa prescrição tem se tornado um anacronismo em nossa língua, como tantos outros presentes em nossas desatualizadas gramáticas tradicionais. Não é novidade alguma o uso de mim, ti como sujeito, assim como o uso de eu, tu, ele como complemento verbal. A novidade é ver esse fenômeno como um fato em nossa língua materna, que deverá servir como revisão das regras impostas pela gramática escolar. Enquanto isso, ensinemos sim que mim, ti não se usam como sujeito, mas sem o ranço da ignorância daqueles que só “aprenderam” esse fato e se acham donos de uma linguagem pura, genuína e única.
Para finalizar essa leitura lingüística da música de Gonzagão, chamo a atenção para as palavras inté e entonce (3ª estrofe). O que diriam aqueles que só conhecem as páginas amareladas de gramáticas desatualizadas? Vocês já sabem: “dois erros”. Mas uma simples consulta a um dicionário como o Aurélio mostrará que inté e entonce são as formas antigas (arcaísmos) de até e então, respectivamente. Que lição tirar disso? Em uma mesma língua, podem conviver várias formas de uma mesma palavra, inclusive formas passadas. Mais do que isso, encontrar na música Asa Branca dois exemplares representativos de um período da língua portuguesa anterior ao atual é um achado valiosíssimo do ponto de vista cultural, histórico e social. Valorizar essa diversidade é um dos papéis do professor de língua portuguesa, que pode, e deve, fazer uso das várias ferramentas que a Linguística pode lhe oferecer.
Enganam-se aqueles que, ao final desta reflexão, pensam que estou aqui propondo que se copie a forma de falar de Luís Gonzaga ou do segmento populacional que ele representa. Este é um mero exercício de leitura, que quer extrapolar a miopia tradicional presente no ensino de língua portuguesa.

* Mestre e Doutor em Linguística pela Universidade de Brasília. Contato: dioney98@unb.br

Um comentário: