sábado, 9 de julho de 2011

Ainda Sobre Pablo Neruda - http: //www.espacoacademico.com.br/042/42csilva.htm - Revista Espaço Acadêmico N° 42- 2004

O Canto Geral de Pablo Neruda, o Poeta do Mundo







Meu caminho junta-se ao caminho de todos. E em seguida vejo que desde o sul da solidão fui para o norte que é o povo, o povo ao qual minha humilde poesia quisera servir de espada e de lenço para secar o suor de suas grandes dores e para dar-lhes uma arma na luta pelo pão.
Pablo Neruda

Em 12 de julho de 1904 — há cem anos — nasce Neftali Ricardo Reys Basoalto. No pequeno lugarejo em que nasceu, Parral, a 340 quilômetros de Santiago, ou em qualquer outro lugar, os nascimentos fazem parte do cotidiano. Nada há de especial. Seus pais são personagens comuns: ele é José del Carmen Reys Morales, maquinista de um trem lastreiro; ela, Rosa Basoalto Reys, professora, morta de tuberculose um mês depois de o menino nascer. Outra personagem entra no enredo de Neftali — Trinidad Candia Marverde — a segunda esposa de seu pai a quem ele acha incrível ter de chamar de madrasta já que ela é o anjo tutelar de sua infância, diligente e doce, com senso de humor camponês, e a bondade ativa e infatigável[1]. Rodolfo e Laura — seus irmãos, filhos de seu pai e de Trinidad — são mais dois personagens do enredo nerudiano
Nos primeiros cinco anos, Neftali corre sua infância pelas veredas de Parral ao sabor da chuva, do vento e do frio. Ternos anos, pouco registrados pela memória do garoto. Temuco — cidade pioneira, dessas sem passado, com grandes lojas de ferragem ostentando desenhos dos produtos à venda porque muitos compradores são índios e não sabem ler. Aliás, os araucanos, que lá vivem, são acossados primeiro pelos espanhóis; depois, pelos próprios chilenos. Neste mesmo ano, 1910, Neftali é matriculado no Liceu, cuja diretora, mais tarde, seria a escritora Gabriela Mistral — Prêmio Nobel de Literatura em 1945. Gabriela Mistral e seu tio Orlando Masson, poeta e fundador do Diário de Temuco, estimulam suas incursões poéticas.
O pai, no entanto, opõe-se à vocação literária do filho, deseja vê-lo formado com vistas a um futuro promissor.  A vida encarrega-se de mostrar o quanto o prognóstico paterno falha. O próprio autor dos versos de A barcarola anula com a sua versão as várias existentes sobre o nascimento e a origem de Pablo Neruda.
Quando eu tinha catorze anos de idade, meu pai perseguia denodadamente minha atividade literária. Não concordava em ter um filho poeta. Para encobrir a publicação de meus primeiros versos busquei um sobrenome que o despistasse totalmente. Encontrei numa revista esse nome tcheco, sem saber sequer que se tratava de um escritor, venerado por todo um povo, autor de belíssimas baladas e romances e com monumento erigido no bairro Mala Strana de Praga.
(Confesso que vivi, p. 165).

Os tempos do Liceu em Temuco cedem lugar a novos tempos em Santiago na Universidade do Chile onde o Instituto de Pedagogia e os novos companheiros universitários o esperam. Na mala, está a peça mais importante do seu vestuário: a capa negra de seu pai. Esse traje lhe empresta certo ar dos poetas do século passado e, com ele, tem a impressão de não estar tão mal de aspecto.[2] Na cabeça, há muitos livros, sonhos e poemas que zumbem como abelhas.[3]
A pensão da Rua Maruri, 513 é seu primeiro abrigo em Santiago. Lá, inspirado pelo pôr-do-sol defronte à sacada, escreve de dois a cinco poemas por dia e termina, em 1923, seu primeiro livro: Crepusculario, cuja edição é custeada por ele e por alguns amigos. Pablo escreve mais de trinta livros depois desse, no entanto a singularidade do momento é relatada por ele, assim:
Meu primeiro livro! Sempre sustentei que a tarefa do escritor não é misteriosa nem mágica, mas que, pelo menos a do poeta é uma tarefa pessoal, de benefício público. O que mais se parece com a poesia é um pão ou um prato de cerâmica ou uma madeira delicadamente lavrada, ainda que por mãos rudes. No entanto creio que nenhum artesão pode ter, como o poeta tem, por uma única vez durante a vida, esta sensação embriagadora do primeiro objeto criado por suas mãos, com a desorientação ainda palpitante de seus sonhos. È um momento que não voltará nunca mais. Virão muitas edições mais cuidadas e belas. Chegaram suas palavras vertidas na taça de outros idiomas como um vinho que cante e perfume em outros lugares da terra. Mas esse minuto de arrebatamento e embriaguez, com som de asas que revoluteiam e de primeira flor que se abre na altura conquistada, esse minuto é único na vida do poeta. (Confesso que vivi, p. 53).

A vida pulsante da capital vai sendo aos poucos incorporada pelo jovem. Crepusculario patrocina a aproximação de estudantes, boêmios, poetas e loucos. Certa loucura anda muitas vezes de braço dado com a poesia. É tão   difícil as pessoas razoáveis se tornarem poetas quanto os poetas se tornarem razoáveis.[4] Conhece muitos escritores: uns morrem no anonimato; outros se tornam famosos. Alberto Rojas Gimenez pertence ao primeiro grupo, é um dos mais queridos companheiros de geração, é diretor da revista Claridad para qual Pablo começa a colaborar como militante político e literário. O ambiente dentro e, principalmente, fora da Universidade já não lhe parece estranho. Mulheres, bares, boemia nutrem o futuro autor de Espanha no coração, mas debilitam quem, como ele, está literalmente com fome.
Outros versos pululam. A juventude é rápida, Crepusculario já é passado. O próximo livro já corre pelas páginas e, em 1924, é entregue aos leitores o livro Vinte poemas de amor e Uma canção desesperada. Por falar em amor, uma jovem inaugura em Pablo o amor. Ela é Albertina Azócar, musa de seus livros inaugurais, universitária inteligente e tímida que não aceita os ardentes convites do vate chileno. Ela é a junção de Marisol e Marisombra, personagens criadas por Neruda para saciar a curiosidade dos leitores que tanto queriam saber a identidade da mulher de Vinte poemas de amor.
Três grandes amores, depois de Albertina, navegaram pelas águas líricas de sua vida. Conhece Maria Antonieta Haagenar, em Java, Batávia, com ela se casa em dezembro de 1930 e dela se separa em 1936. No final da década de 30, inicia um relacionamento com a pintora argentina Delia del Carril com quem vive até 1955 e a quem evita magoar quando publica anonimamente, em 1952, em Nápoles, Os versos do capitão, dedicados à Matilde Urrutia sua paixão clandestina.
A verdade é que eu não quis, durante muito tempo, que esses poemas ferissem Delia, de quem me separava. Delia del Carril, passageira suavíssima, cordão de aço e de mel que atou minhas mãos nos anos sonoros, foi para mim durante dezoito anos uma companheira exemplar. Este livro, de paixão brusca e ardente, ia chegar como uma pedra lançada sobre sua delicada estrutura. (Confesso que vivi, p. 226).

Por volta de 1946, é apresentado à cantora Matilde, e ambos vão se enovelando gradativamente. Dos encontros fortuitos ou marcados, ao casamento simbólico, em Capri, sob o testemunho da lua e, finalmente, ao casamento oficial em 1966, com muitos convivas, a vida de Pablo e Matilde é regada sempre de paixão. Tudo lhes é aprazível: os passeios ao mercado Vega, as viagens ao exterior ou aos recônditos lugarejos chilenos, a construção e decoração das casas, as reuniões em Isla Negra. Essa paixão continua viva em Matilde mesmo após a morte de Pablo, como ela mesma registra em Minha vida com Pablo Neruda.
Depois de sua morte, restou-me muito tempo disponível. Partira aquele menino grande, tão exuberante, que ocupava todas as horas de minha vida. Então, com imensa avidez, comecei a freqüentar a Biblioteca Nacional à procura de suas primeiras colaborações, enviadas para jornais e revistas da época. (Minha vida com Pablo Neruda, p.230).

Os filhos perdidos deixam uma lacuna na vida do poeta. Com Maria Antonieta, tem uma filha, Malva Marina Trinidad, morta aos oito anos vítima de uma doença congênita; com Matilde, duas gravidezes interrompidas por uma fada má, invejosa de tanta felicidade.Tudo foi inútil; perdeu dois filhos tão amados, tão desejados, que já tinham uma infinidade de nomes lindos[5]. Essas perdas prematuras assinalam o papel efêmero de pai ensaiado por Pablo.
Um prêmio literário estudantil, alguma popularidade advinda dos novos livros e a capa preta outorgam-lhe certa respeitabilidade fora dos círculos literários. Pablo, porém, almeja ultrapassar os limites do Chile, cantar seus versos, sua pátria, seu povo; observar a América sob todos os lados; descobrir outras culturas e revelar a de seu povo. Seus feitos literários e, principalmente, a influência do amigo Bianchi, membro do clã nobre chileno, transformaram-no cônsul. Rangun, na Birmânia, é o destino por ele escolhido, em função do desconhecimento dos demais países mencionados e da sonoridade da palavra.
Neruda, como representante oficial do Chile, exerce função diplomática em vários países: Birmânia (hoje, Myanmar), Cingapura, Ceilão (atual Sri Lanka), Argentina, Espanha, França e México. Não cabem, neste roteiro, todas as intempéries nem todos os acontecimentos grandiosos, mas cabem aqueles que mais influenciam o poeta e, por conseguinte, seus escritos. Pablo é um cronista de sua época. Registra, em seus versos, os momentos relevantes do século XX, sob a ótica dos que estão no centro e dos que estão na periferia.
Também, não é admissível constar deste relato, a lista de todos os grandes artífices e/ou arautos da cultura e da política que, num ponto do planeta, estabelecem contatos, rápidos ou eternos, com o poeta andarilho. Algumas dessas figuras suscitam êxtase e entusiasmo; outros, repulsa e raiva. Muitos nomes são citados em dois dos mais de trinta livros publicados: Canto geral e Confesso que vivi.
De 1934 a 1936, o autor de Canto geral é cônsul na pátria de Lorca. A escuridão do franquismo tolda sobre a Espanha. Assiste a desgraças que deixam marcas indeléveis em sua poética e mudam-lhe o rumo. Lorca é assassinado. O povo, espicaçado na agonia, perde seu poeta e sua liberdade.
Espanha, envolta em sonho, despertando
como uma cabeleira com espigas,
te vi nascer, entre as brenhas
e as trevas, lavradora,
levantar-te entre os carvalhos e os montes
e percorrer o ar com as veias abertas. (...)
Até hoje corre a água de tuas penhas
entre os calabouços, e susténs
a tua coroa de farpas em silêncio,
para ver quem pode mais, se tuas dores
ou rostos que cruzam sem olhar-te.
Eu vivi com a tua aurora de fuzis,
e quero que de novo povo e pólvora
sacudam as ramagens desonradas
até que trema o sonho e se reúnam
os frutos divididos da terra.
(Canto geral, p. 417).

À Espanha de Francisco Franco não interessa um cônsul rebelde, opositor o que leva o ditador espanhol a pressionar o governo do Chile a destituir Neruda do cargo diplomático. Em Paris, o autor de Espanha no coração recruta escritores e intelectuais para, com palavras, lutarem contra o fascismo. Edita, com essas armas literárias, a revista Os poetas do mundo defendem o povo espanhol.
A Guerra Civil Espanhola vai “patrocinar” a Neruda uma das incumbências mais nobres de sua vida. O governo da Frente Liberal, Dom Pedro Aguirre Cedra, decide enviar o antibeligerante bardo à França para cumprir nobre missão: a de retirar os espanhóis das prisões e de embarcá-los no Winnipeg. Neste barco, reformado para aumentar sua capacidade de passageiros, atracado ao porto vizinho de Bordéus, cerca de dois mil espanhóis escapariam rumo ao Chile.
Espanha no coração é um livro que retrata e denuncia os horrores da guerra, no entanto, foi, ao pé da letra, fabricado por soldados na gráfica instalada por Manuel Altoguirre em plena frente do leste, perto de Gerona num velho mosteiro.
Os soldados do front aprenderam a manejar os tipos da gráfica. Mas aí faltou o papel. Encontraram um velho moinho e ali decidiram fabricá-lo. Estranha mistura a que foi elaborada entre as bombas  que caiam no meio da batalha. Tudo era aproveitado no moinho, desde uma bandeira do inimigo à túnica ensangüentada de um soldado mouro. Apesar dos materiais insólitos e da inexperiência total dos fabricantes, o papel ficou muito bonito. Os poucos exemplares que restaram  desse livro assombram pela tipografia e pelas páginas impressas em misteriosa manufatura. Anos depois vi um exemplar desta edição em Washington, na Biblioteca do Congresso, colocado em uma vitrina como um dos livros mais raros do nosso tempo. (Confesso que vivi, p. 129.)

No México, o poeta de Canção de gesta[6] encerra sua trajetória diplomática. A função de cônsul torna-se similar ao trabalho do policial, pois consiste em averiguar a origem racial das pessoas.  Os versos de retaliação, no enterro de Leocádia, mãe de Prestes, ao governo Vargas, que mantém o Cavalheiro da Esperança no cativeiro por sete anos, também contribuem para sua retirada do México.
Senhora, fizeste grande, muito maior nossa América
Deste-lhe um rio puro de águas colossais,
Deste-lhe uma grande árvore de raízes infinitas:
Um filho teu digno de sua pátria profunda.
(Antologia poética, p. 99)

México, florido, espinhoso, cheio de magia e de mistérios, pátria de pintores — Diego Rivera, José Clemente Orozco, David Alfaro Siqueiros — que, com pinceis e tintas, retratam em telas e murais a história e a geografia de sua pátria.  Aos escritores mexicanos cabe uma hilariante antologia composta para Neruda. Quinze ou vinte bardos resolvem homenageá–lo com um passeio numa barca florida. Garrafas de Tequila e pistolas não faltavam na embarcação. Em certo momento, os ébrios poetas rendem-lhe um estranho preito: oferecem-lhe suas pistolas para que ele disparasse para o céu. Com grande alarido, cada rapsodo mexicano saca com decisão sua pistola para que o assustado Pablo elegesse a sua e não a dos outros.
Aquele pálio inseguro de pistolas, que se cruzavam diante de meu nariz ou me passavam debaixo dos sovacos, tornava-se cada vez mais ameaçador, até que me ocorreu tomar de um sombreiro típico e recolhê-las todas em seu bojo depois de pedi-las ao batalhão de poetas em nome da poesia e da paz. Todos obedeceram e desse modo consegui confiscar-lhes as armas por vários dias, guardando-as em minha casa. Acho que fui o único poeta em cuja honra se compôs uma antologia de pistolas.
(Confesso que vivi, p.164.).

Com o fim voluntário de sua carreira diplomática, o poeta está de volta a sua pátria, aos braços do seu povo aos quais não aceita abandonar nem em seu derradeiro momento.
Acho que o homem deve viver em sua pátria e creio que o desarraigamento dos seres humanos é uma frustração que de uma maneira ou de outra entorpece a claridade da alma. Eu não posso viver senão em minha própria terra. Não posso viver sem pôr os pés, as mãos e o ouvido nela, sem sentir a circulação de suas água e de suas sombras, sem sentir como minhas raízes buscam em seu barro pegajoso as substâncias maternas.
(Confesso que vivi, p. 173).

Um desejo súbito de conhecer um pouco mais sua origem, levam-no a subir até Macchu Picchu, aquelas construções de pedra rodeadas pelos altíssimos cumes dos Andes verdes. Ali nasce o poema Alturas de Macchu Picchu que depois será inserido em Canto Geral.
Então na escada da terra subi
entre o emaranhado atroz das selvas perdidas
até a ti Macchu Picchu.
Alta cidade de pedras escalares,
por fim morada do que o terrestre
não escondeu nas adormecidas vestimentas.
Em ti, como duas linhas paralelas,
o berço do relâmpago e do homem
embalavam-se de espinhos.

Mãe de pedra, espuma de condores.
Alto arrecife da aurora humana.
Pá perdida na primeira areia.
(Canto geral, p. 31).

No Chile, Pablo constata que a realidade de seu país, em muitos aspectos, assemelha-se à da Espanha. Não há guerra deflagrada, mas há pobreza, ignorância, subdesenvolvimento em toda parte da América Latina desde a colonização luso-espanhola. Neruda finca seus pés no solo pátrio, descobre suas raízes, inquieta-se com a massa de desabridos que vivem sob o signo da desesperança na terra da esperança. Pablo volta-se para seu povo e assume a militância.
Em quatro de março de 1945, a gente sem escola, sem sapato elege-o senador. Meses depois, em quinze de julho de 1945, ele filia-se ao Partido Comunista. Como senador, viaja para ermos lugarejos, inteira-se  da vida dos inumeráveis trabalhadores do salitre e do cobre, dos que nunca usaram colarinho e gravata. Essas peregrinações ratificam o ideário do poeta militante.
Nunca pensei, quando escrevi meus primeiros livros solitários, que com o passar dos anos me encontraria em praças, ruas, fábricas, salas de aula, teatros e jardins, dizendo meus versos. Percorri praticamente todos os rincões do Chile, derramando minha poesia entre a gente de meu povo.
(Confesso que vivi, p.267).

Pablo acredita nas idéias socialistas de Gabriel Gonzálvez Videla e ajuda a elegê-lo. No poder, aos poucos, o véu socialista cai e Videla, o Judas chileno, começa a perseguir todos aqueles — inclusive os que o acompanham nas suas andanças eleitorais — que divirjam de suas idéias, agora bem ao gosto dos norte-americanos.
Dois documentos consolidam a perseguição de Videla ao Senador Pablo Neruda: Carta íntima para milhões de homens, publicada na Venezuela em 1946 e Eu acuso, lido na Assembléia em fevereiro de 1948. Este discurso direto é o estopim para a cassação do mandato de senador de Neruda.
Sob o jugo do aprendiz de caudilho, o Partido Comunista é prescrito pela Lei de Defesa da Democracia, denominada Lei Maldita. Neruda é cassado e passa a viver na clandestinidade. Período de recolhimento e de observação, acolhido em distantes vilarejos, Pablo aguarda o momento seguro para seguir seu caminho pela Zona Austral da Cordilheira dos Andes rumo à Argentina. Neste compasso de espera, na solidão de cubículos ou em estâncias ermas, Pablo termina de escrever Canto Geral: grito de denúncia contra as injustiças históricas da América Latina, revisão de séculos de dominação estrangeira e de resistência nativa — arma de combate do poeta desterrado.
Nos tempos de exílio, volta a percorrer várias partes do mundo: algumas conhecidas; outras, não. A recepção é quase sempre calorosa por parte dos intelectuais e dos artesãos da cultura, mas a presença do autor de Para nascer, nasci incomoda as autoridades contrárias às idéias do poeta engajado nas causas sociais. Entre vistos negados em alguns lugares, saídas rápidas, estratégicas em outros, aplausos e flores dos leitores em quase todos os continentes, participações em congressos, premiações, o desterro chega ao fim. O Chile espera-o com seu bosque astral, com as ondas do Pacífico, com a selva perdida. Daquelas terras, daquele barro, ele sai a andar, a cantar pelo mundo e, para aquelas terras, ele volta sempre em busca de fôlego, inspiração. Sua pátria é seu alimento, dela ele extrai o pólen que espalha pelo mundo em forma de poesia.
Coerente com a vida, seus escritos tematizam sobre o que lhe é mais caro: o amor sensual, o amor pelo seu povo, pela humanidade, a luta pela justiça. A natureza borda os versos de Pablo, e o mar, calmo ou turbulento, concede-lhe o ritmo inerente à matéria tratada.
Sua poética é vasta e bem diversificada, reflexo, inclusive, de sua trajetória — como representante oficial como político, combatente ou como proscrito do Chile — por muitas regiões, dos famosos centros europeus aos recônditos lugarejos do Oriente. Nada da vida lhe escapa, e dela extrai a matéria-prima de sua obra: amores, paixões, amizades, guerras, golpes, lutas, política, momentos solenes ou prosaicos.
Minha poesia e minha vida têm transcorrido como um rio americano, como uma torrente de águas do Chile, nascidas na profundidade secreta das montanhas austrais, dirigindo sem cessar até uma saída marinha o movimento de suas correntes. Minha poesia não rejeitou nada do que pôde trazer em seu caudal; aceitou a paixão, desenvolveu o mistério e abriu caminho entre os corações do povo. Coube a mim sofrer e lutar, amar e cantar; couberam-me na partilha do mundo o triunfo e a derrota, provei o gosto do pão e do sangue. Que mais quer um poeta? E todas as alternativas, desde o pranto até os beijos, desde a solidão até o povo, perduram em minha poesia, atuam nela porque vivi para minha poesia e minha poesia sustentou minhas lutas. (Confesso que vivi, p. 178).

Pablo é um ser intenso: ama e protesta com a mesma veemência. Escreve seus versos mais contumazes contra os regimes ditatoriais sem perder a ternura. Engajado nas lutas de seu tempo, jamais deixou o amor e a amizade naufragarem de sua vida, ancorou-os sempre no seu cais poético. O oceano singra os caminhos por onde os outros elementos da natureza entram nas estrofes nerudianas. O lado romântico nunca exclui o engajado. Os dois integram-se em plena sintonia. Em suas memórias, o poeta confessa que viveu  sua época e com intermitências se infiltrou a política em sua vida e em sua poesia não era possível fechar-se em seus poemas, assim também não era possível fechar a porta ao amor, à vida, à alegria ou à tristeza em seu coração de jovem poeta.[7]
Neruda, uma das estrelas fulgurantes da constelação poética da América Latina, cidadão e poeta do mundo, sabe iluminar as palavras com as quais pode denunciar, homenagear, registrar pessoas e acontecimentos que construíram a história de nossa época e a de outras que a ela influenciam.  Nas linhas de seus versos, o poeta prosterna-se diante das palavras, une-se a elas, persegue-as, morde-as, derrete-as, declara-se por elas apaixonado.
Vocábulos amados... Brilham como pedras coloridas, saltam como peixes de prata, são espuma, fio, metal, orvalho...São tão belas que quero colocá-las todas em meu poema... Agarro-as no vôo, quando vão zumbindo, e capturo-as, limpo-as, aparo-as, preparo-me diante do prato, sinto-as cristalinas, vibrantes, ebúrneas, vegetais, oleosas, como frutas, como algas, como ágatas, como azeitonas... E então as revolvo, agito-as, trituro-as, adorno-as, liberto-as... Deixo-as como estalactites em meu poema como pedacinhos de madeira polida, como carvão, como restos de naufrágio, presentes da onda... Tudo está na palavra... Uma idéia inteira muda porque uma palavra mudou de lugar ou porque se sentou como uma rainha dentro de uma frase que não a esperava e que lhe obedeceu... Têm sombra, transparência, peso, plumas, pêlos, têm tudo o que se lhes foi agregado de tanto vagar pelo rio, de tanto transmigrar de pátria, de tanto ser raízes... São antiqüíssimas e recentíssimas. Vivem no féretro escondido e na flor apenas desabrochada... (Confesso que vivi, p.57-8)

O poeta discorre sobre as palavras e, por meio delas, apresenta os temas recorrentes em sua escrita: palavras do mar, do ar, da terra; palavras táteis, olfativas, auditivas, visuais, palatáveis; palavras líricas, épicas e dramáticas: palavras do opressor e do oprimido. Palavras iguais incrustadas de maneira diferente na frase, na no verso, no discurso do poeta, do trabalhador, do caudilho, do liberal, do colonizador e do colonizado.
Que bom idioma o meu, que boa língua herdamos dos conquistadores torvos... Estes andavam a passos largos pelas tremendas cordilheiras, pelas Américas encrespadas, buscando batatas, feijõezinhos, tabaco negro, ouro, milho, ovos fritos, com aquele apetite voraz que nunca mais se viu no mundo... Tragavam tudo: religiões, pirâmides, tribos, idolatrias iguais as que eles traziam em suas grandes bolsas... Por onde passavam a terra ficava arrasada... Mas caíam das botas dos bárbaros, das barbas, dos elmos, das ferraduras, como pedrinhas, as palavras luminosas que permaneceram aqui resplandecentes... o idioma. Saímos perdendo... Saímos ganhando... Levaram o ouro e nos deixaram o ouro... Levaram  tudo e nos deixaram tudo... Deixaram-nos as palavras. (Confesso que vivi, p.58)

Pablo confessa, com esse idioma — corrente, expressivo, sonoro —herdado dos colonizadores, que recolhe lembranças “sem cronologia, tal qual estas ondas que vão e vêm”.[8] O fluxo destes escritos, portanto, obedece ao do seu lembrador. As idas e vindas do poeta a tantos lugares deixam o leitos meio aturdido à procura de um mapa, de uma bússola, de um cronômetro.
Matilde irrompe pela vida do poeta, semeia amor sobre ele. Muitas linhas, desde Os versos do capitão, são dedicadas a ela.
Matilde, nome de planta ou de pedra ou vinho,
do que nasce da terra e dura,
palavra em cujo crescimento amanhece,
em cujo estio rebenta a luz dos limões.

Nesse nome correm navios de madeira
rodeados por enxames de fogo azul-marinho,
e essas letras são a água de um rio
que em meu coração calcinado desemboca.

Oh nome descoberto sob uma trepadeira
como a porta de um túnel desconhecido
que comunica com a fragrância do mundo!

Oh invade-me com tua boca abrasadora,
indaga-me, se queres, com teus olhos noturnos,
mas em teu nome deixa-me navegar e dormir.
(Cem sonetos de amor, p. 11.).

Matilde e Pablo passam a viver sob o mesmo teto, ou melhor, tetos. O casal vive em três casas: La Choscana, em Santiago, aos pés do Monte de São Cristóvão; La Sebastiana em Valparaíso, cidade sinuosa, enovelada, cheia de ladeiras: nos morros, a pobreza; na baixada, perto do mar, a riqueza e a casa de pedra defronte por mar, em Isla Negra. Agora, são casas-museu abrigos de objetos adquiridos por Pablo ou a ele presenteados pelos amigos e pela natureza.  Essas peças compõem coleções coerentemente distribuídas nos três museus e expostas à visitação. Garrafas, carrancas, estátuas, livros, caracóis e outros presentes do mar, cavalo de madeira, miniatura de barcos e até uma locomotiva revelam as preferências do poeta e esclarecem algumas imagens recorrentes em sua poética.
Pablo recolhe-se para escrever, mas já não pode fazê-lo como dantes. Seu canto é luta renhida, é hino de liberdade. O ano de 1969 está destinado aos versos. As palavras sufocam-no. Ele pressente que precisa libertá-las no papel. Não é fácil, porém isolar-se. Nos últimos tempos, seu refúgio em Isla Negra tem sido violado. A poesia e a política imbricam-se à revelia do escritor de A espada incendiada.
A vida política veio como uma tempestade para me tirar de meu trabalho. Voltei uma vez mais a multidão.
A multidão tem sido para mim a lição de minha vida. Posso chegar a ela com a inerente timidez do poeta, com o temor do tímido, mas — uma vez em seu seio — sinto-me transfigurado. Sou parte da maioria essencial, sou mais uma folha da grande árvore humana.
(Confesso que vivi, p. 353)

Em 1970, em prol do partido, meio a contragosto, candidata-se à Presidência da República. Com certo alívio, cede seu lugar ao amigo Salvador Allende cuja candidatura é capaz de unir todos os partidos formadores da Unidade Popular. Candidato à presidência por três vezes consecutivas, Allende é consagrado nas urnas pelo voto do povo chileno.
Allende nomeia Pablo Embaixador em Paris. Com o auxílio prestimoso de Jorge Edwards, o poeta cumpre sua missão com capacidade, dignidade e muito orgulho; afinal, agrada-lhe a idéia  de representar, na França, um governo popular, alcançado depois de tantos anos de governos medíocres e mentirosos.[9]
Após tantas quase vitórias, em 1971, Pablo Neruda ganha o Prêmio Nobel de Literatura. Convalescente de uma recente cirurgia o agraciado vate chileno viaja com sua companheira para Estocolmo. Lá, profere um personalíssimo discurso — lírico e engajado —, escrito em guardanapos de papel, como relata a Gabriel García Márquez.
Menos de dois anos após essa homenagem, por tantos almejada, a mão do verdugo empapa de sangue[10] a praça, o país. O poeta, enfraquecido pela doença e pelo sofrimento do povo, não resiste, encanta-se em 23 de setembro, sem realizar o seu sonho.
Havia sonhado e lutado toda a vida pela erradicação da pobreza; queria que em seu país houvesse justiça social, um pouco de igualdade. Colocou sua pena e sua vida a serviço desta causa nobre. Muitas vezes arriscou sua integridade física perseguido por González Videla, que considerávamos um tirano. É que não conhecíamos a tirania de fato. (...) Sempre animado, entusiasta, alegre, falando às massas, tentando despertar a consciência adormecida e fatalista dos pobres que se contentam com as esmolas do nada!
(Minha vida com Pablo Neruda, p. 9.).

Matilde providencia os paramentos do velório e decide que Pablo deve ser velado em sua casa em Santiago. A casa está em ruínas, os vidros estilhaçados, a escada da entrada transforma-se numa cachoeira. Ela insiste que ali é o lugar de Pablo. Os vizinhos arranjam tábuas para que o caixão com o poeta e o cortejo possam chegar ao segundo andar. Não permite que ninguém varra os destroços.  O cenário da casa do poeta deve assemelhar-se ao do Chile: mortos e feridos estão nas ruas, nas praças, nas valas, nos estádios.
O enterro do poeta, no dia seguinte, é a primeira manifestação de mágoa, revolta, rebeldia contra o golpe. Pessoas diferentes lugares e origens vão chegando à pracinha de Monte de são Cristóvão. Elas choram, lançam flores e gritam em uníssono: “Pablo Neruda, presente, agora e sempre! Povo chileno, presente, agora e sempre! Allende, presente, agora e sempre! Pablo Neruda, presente, agora e sempre!”.
Esse grito revela um raio de luz e de esperança de um povo que não vai ser pisado pelas botas da ditadura. O relato está no tempo presente: presente-mais-que-passado, presente-mais-que-futuro, pois a obra de Pablo Neruda está presente, o povo está presente. Presente no Canto geral de um poeta do povo que deixa por escrito um testamento poético  de luta por um porvir mais justo.
E a minha voz nascerá de novo,
talvez noutro tempo sem dores,
sem os fios impuros que emendaram
negras vegetações ao meu canto,
e nas alturas arderá de novo
o meu coração ardente e estrelado.

Referências

NERUDA, Pablo. Poesias completas.Buenos Aires: Losada, 1951.
_______. Confesso que vivi. Trad. de Olga Savary. 3. ed. São Paulo: DIFEL/ Círculo do Livro, 1983.
_______. Canto Geral. Trad. de Paulo Mendes campos. 6. ed. São Paulo: DIFEL, 1984.
_______. A barcarola. Trad. de Olga Savary. Porto Alegre:L&PM, 1998
_______. Antologia poética. Trad. de Eliane Zagury. 19. ed. Rio de janeiro:José Olympio 2004.
_______. Cem sonetos de amor. Trad. De Calos Nejar. Porto Alegre:L&PM, s.d.
URRUTIA, Matilde. Minha vida com Pablo Neruda. Trad.de Luciana Savaget. Rio de Janeiro:Bertrand Brasil, 1990.


Por MARIA CÉLIA BARBOSA REIS DA SILVA
Doutora em Literaturas de Língua Portuguesa pela PUC – RJ, Mestre em Literatura Brasileira pela UFRJ, Professora Adjunta da Universidade da Força Aérea, Professora Titular do Centro Universitário Moacyr Sreder Bastos

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